Lucas 01/06/2023
Documentário de Westeros: as histórias por trás das crônicas
Fogo e Sangue, lançado no Brasil em 2019, é o último livro escrito pelo norte-americano George R. R. Martin (1948-). Enquanto o mundo continua na espera do prometido sexto livro d'As Crônicas de Gelo e Fogo (espera esta que já dura doze anos), o enigmático autor resolveu investir na história por trás da história: em Fogo e Sangue, vemos o surgimento, consolidação e esfacelamento da Casa Targaryen, que governou Westeros dinasticamente por mais de três séculos até os eventos das crônicas propriamente ditas (ilustradas também pela série da HBO).
Trocando em miúdos, a obra é como se fosse um livro histórico de Westeros, um volume que certamente personagens como Tyrion Lannister ou Samwell Tarly devem ter lido em algum momento de suas vidas. A premissa parece tonta e simples, mas quando se mergulha a fundo na genealogia dos Targaryen, o leitor ficará com uma sensação de imersão jamais vista não somente numa história propriamente dita, mas num mundo complexo, cheio de desavenças e questões políticas e hierárquicas. Se a grande marca d'As Crônicas de Gelo e Fogo é a criatividade (eu, pelo menos, nunca escrevi uma resenha das crônicas sem citar isso) do seu idealizador, aqui Martin atinge um novo patamar. EsTa expansão, entretanto, não é geográfica ou horizontal como acontecem nas narrativas originais e mais "atuais" de Westeros, mas se direciona ao passado do continente com os seus reinos.
O livro menciona brevemente a fuga dos Targaryen da antiga Valíria, a maior cidade do mundo, que ficava à leste de Westeros (no continente chamado Essos) e sucumbiu diante de eventos cataclísmicos (provavelmente terremotos e erupções vulcânicas). Ao se instalarem na ilha de Pedra do Dragão e serem ameaçados por reinos de Westeros, Aegon, o Conquistador, junto com suas duas irmãs (e esposas) Visenya e Rhaenys partiram para a conquista de Westeros "a bordo" de seus dragões, Vhagar (de Vinseya), Meraxes (de Rhaenys) e o lendário Balerion, o Terror Negro, maior dragão que já existiu e que era montado por Aegon.
Este fragmento inicial é o mais popular das crônicas posteriores, citado e comentado dezenas de vezes em todas elas. Ao fundar a cidade de Porto Real, que depois transformou-se na capital de Westeros e criar o Trono de Ferro com as espadas derretidas dos seus inimigos, Aegon e sua irmãs dominaram seis dos sete reinos do continente (Dorne foi a exceção, pelo menos àquela altura) e implantaram uma nova Era, a qual serviu para marcar os séculos em AC (antes da Conquista) e DC (depois da Conquista). Como pode se imaginar, a tal conquista deu-se com muito sangue, assassinatos em massa e guerras até que tudo se acalmasse diante das asas ameaçadoras dos dragões da família.
Diante de colossal poder, era impossível que alguma casa ou até mesmo todas elas se unissem para contestar o domínio dos Targaryen. Mas se havia essa proteção de fora, o interior estava em ebulição com as gerações posteriores. Para manter a "pureza" do sangue valiriano, os Targaryen priorizavam uniões matrimoniais entre irmãos e irmãs (o que gerou vários conflitos históricos de ordem religiosa com nativos de Westeros, as quais demonizavam essa prática). Pois foram os filhos de Aegon, Aenys (filho de Rhaenys) e Maegor (filho de Visenya) quem promoveram os primeiros conflitos internos da Casa Targaryen, cerca de quatro décadas após a conquista.
Maegor, o Cruel, é o primeiro grande vilão de Westeros, um rei sanguinário, desumano e impulsivo. Montado em Balerion, seu domínio do reino por quinze anos foi marcado por massacres (até mesmo familiares) e confrontos religiosos o isolaram, até que ele perecesse no Trono de Ferro (literalmente). Tais atrocidades também são recorrentes nas crônicas originais, fazendo de Maegor um personagem lendário (no mau sentido), mas também verdadeiro.
Depois dele, Westeros conheceu o rei Jaehaerys, casado com sua irmã Alysanne, ambos descendentes de Aegon por parte de Rhaenys. O mais longo reinado conhecido de Westeros (quase 53 anos) trouxe a Jaehaerys a alcunha de Conciliador. Em relação a Fogo e Sangue, pode-se dizer que o casal é protagonista da narrativa. O casal real viajava constantemente pelo reino e Alysanne promovia reuniões com as mulheres de cada local visitado, um ato de grande importância num mundo tremendamente machista e patriarcal. Juntos, ambos tiveram treze filhos. Ao mesmo tempo em que o reino vinha sendo pacificado, a família ia sendo acometida de diversas tragédias: o fim de Alysanne é particularmente triste.
Já idoso, Jaehareys determina que seu sucessor seria seu neto Viserys e aqui os comentários do enredo podem ser amenizados: a partir da terceira centena de páginas na excelente edição da editora Suma das Letras (que conta com belíssimas ilustrações), há a narração dos eventos d'A Casa do Dragão, série da HBO lançada em 2022. Daqui em diante, torna-se particularmente interessante a construção e os destinos de personagens como Rhaenyra e Daemon Targaryen, Alicent Hightower, Aegon II, Aemond (o Caolho), que aparecem e são importantes na série. O livro tem a vantagem de adiantar muitos dos desdobramentos não comportados pela primeira temporada da adaptação, dentro daquilo que os historiadores de Westeros chamaram de Dança dos Dragões, a mais intensa guerra civil da Casa Targaryen. E a partir desses momentos na narrativa, largar o livro torna-se humanamente impossível, especialmente para quem gostou da série lançada em 2022. São incontáveis os momentos épicos que a (s) temporada (s) vindouras irão demonstrar.
O livro possui um estilo histórico mesmo, enciclopédico, totalmente diferente das crônicas. O narrador (que não se identifica, mas que Martin o chama de arquimeistre Gyldayn, da Cidadela, o "berço" histórico de Westeros) busca relatos de meistres e até mesmo de um bobo (o popular Cogumelo, que serviu especialmente à Rhaenyra), questionando e teorizando versões por vezes conflitantes de um mesmo relato, o que aguça o leitor. Por esse motivo, a abordagem narrativa aqui é diferente: enquanto que nas crônicas são inúmeros pontos de vista simultâneos, o foco das linhas de Fogo e Sangue é a cronologia histórica. Neste sentido, é uma leitura que funciona melhor a leitores fãs da série original que não possuem uma mente tão insanamente criativa ou apaixonada por fantasia de uma forma geral. As lendas, os mitos, as religiões, os costumes, entre outros elementos tão distintos entre si ainda estão aqui, mas a preocupação central do narrador é com artifícios mais "terrenos" (é tocante, por exemplo, a explicação racional de muitos desafios práticos de Westeros, como a tributação mais elevada de insumos supérfluos importados de Essos, algo que particularmente fascina um contador, como este que vos escreve).
Fogo e Sangue termina no início do reinado de Aegon III, uns 140 anos antes da famosa Rebelião de Robert, que destruiu a dinastia Targaryen e foi o estopim para os acontecimentos d'A Guerra dos Tronos, primeiro livro das crônicas mais conhecidas. Ou seja, há muito chão literário a ser percorrido ainda até que haja o encontro dos dois núcleos (também está se prometendo um segundo volume de Fogo e Sangue. A ver...). Mas a espera é um deleite: George Martin brinda o fã de Westeros com uma obra rica, tornando práticas questões fantasiosas e mandando às favas o leitor mais cético que poderia pensar que a criatividade do autor possui algum limite.