Ivan de Melo 27/08/2020
Djamila Ribeiro e o "lugar de fala", um conceito urgente para a contemporaneidade
Esta obra faz parte da coleção “Feminismos Plurais” dirigida pela filósofa Djamila Ribeiro e que recentemente ganhou reedição pela editora Jandaíra. São obra curtas e didáticas que abordam temas essenciais para compreendermos as discussões identitárias na contemporaneidade, sobretudo em um momento em que conceitos ou chaves teóricas abordadas na coleção como interseccionalidade (abordado por Carla Akotirene), apropriação cultural (abordado por Rodney William) e empoderamento (abordado por Joice Berth) correm o risco de sofrer um esvaziamento de sentido progressivo à medida que são difundidos de forma acrítica como se tornou comum nas redes sociais. É o que ocorre com a noção de “lugar de fala” e se você ainda não leu o que Djamila Ribeiro escreve sobre o tema pode ser que esteja compreendendo apenas parte daquilo que o conceito abrange ou talvez ainda incorra em visões limitadoras sobre o mesmo.
Em seu texto Djamila propõe uma contextualização de “lugar de fala” de modo a destacar uma complexidade própria ao conceito. Para isso, seu livro está dividido em quatro partes. Em “Um pouco de história”, a autora dialoga com autoras como Lélia Gonzalez, Giovana Xavier, a panamenha Linda Alcoff e a estadunidense bell hooks para retraçar uma parte da história do movimento feminista mundial que pouco aparece na narrativa tradicional: a participação e o protagonismo das mulheres negras. A partir da experiência e dos relatos da estadunidense Sojouner Truth e sua relação com os primeiros movimentos sociais liderados pelas mulheres brancas, a autora destaca a importância de discussões que prezem pelas experiências compartilhadas por grupos distintos de mulheres levando em consideração as intersecções que permeiam cada tipo de resistência, o que distinguirá, por exemplo, as pautas e demandas do feminismo negro de outros grupos, uma vez distintos os lugares que cada um ocupa na sociedade. Este reconhecimento das distintas identidades sociais é fundamental, por sua vez, para um movimento de descolonização epistemológica ao levarmos em consideração que o próprio colonialismo é responsável pela lógica de silenciamento destes grupos.
Na segunda parte do livro intitulada “Mulher negra: o outro do outro”, Djamila retoma a noção clássica levantada por Simone de Beauvoir quando esta afirmou em sua obra que a mulher é uma construção definida a partir do olhar do homem, configurando-a assim como o “outro” do mesmo e sujeita aos papeis hierarquizados que lhes são impostos. Estabelecendo um diálogo crítico a esta visão junto a autoras como Sueli Carneiro, a portuguesa Grada Kilomba e as estadunidenses Audre Lorde e Patricia Hill Collins, Djamila destaca mais uma vez a importância de nomear as diferenças, pois estas embaçam uma ideia de universalidade sobre as experiências individuais. Há distintas formas de experienciar gênero, de ser mulher, e essas distinções precisam ser nomeadas para que novas categorias e demandas políticas possam vir à tona na esfera pública. Neste sentido, se a mulher é o outro do homem, a mulher negra é o outro da mulher branca ou “o outro do outro”, o que faz com que o feminismo negro seja necessário não com a premissa de hierarquizar as opressões, mas de destacar os diferentes lugares ocupados por estes grupos na sociedade e logo os seus lugares de fala.
É com este encaminhamento que as terceira e quarta partes do livro chamadas “O que é lugar de fala?” e “Todo mundo tem lugar de fala” têm início. No diálogo com diversas teóricas, a autora explica como o conceito surge no campo da comunicação e só mais tarde se aproxima da noção que hoje possui ao se relacionar com o chamado “feminist standpoint”, uma abordagem das experiências de ser mulher que leva em consideração a intersecção das desigualdades e os possíveis entrecruzamentos entre gênero, raça, classe, geração sem o predomínio de uma destas características sobre a outra. Em grande medida, esta abordagem permite uma discussão estrutural que leva em consideração o lugar social que os grupos ocupam na sociedade e que condições sociais o legitimam ou não. Para Djamila é neste ponto que residem de forma limitada a maioria das críticas sobre o conceito de “lugar de fala” no cenário brasileiro, os olhares detêm-se sobre os indivíduos e menos sobre as desigualdades e hierarquias que subalternizam determinados grupos sociais. Soma-se a isso a ideia comumente errônea de que “lugar de fala” implicaria somente na fala autorizada de determinados indivíduos sobre determinado tema com base em sua experiência. A autora já disse em entrevistas que o conceito não implica em um lugar de silenciamento ou de escuta passiva, mas sim de diálogos. Não devendo ser confundido com a premissa da representatividade, o “lugar de fala” estaria mais próximo de uma categoria de análise de discurso a partir do qual podemos compreender que condições sociais legitimam ou não que determinados discursos sejam proferidos a respeito de determinados grupos a partir do lugar ocupado por quem os profere, além de uma postura ética da qual devemos ser conscientes ao discursar sobre o lugar que não ocupamos. Um dos muitos desdobramentos dessa perspectiva é a abertura de cada vez mais espaços de debate na esfera pública ocupados pelas diferenças, além da visão crítica sobre as hierarquias sociais, os processos de colonização, a desigualdade, a pobreza, o racismo, entre outros problemas sociais.
Em suma, este é um livro que precisa ser lido e difundido. Djamila constrói diálogos muito importantes com diversas autoras numa perspectiva descolonial, o que faz desta obra também um grande índice para quem quer se aprofundar em mais leituras sobre os temas que aborda em um momento que o mercado editorial publica cada vez mais obras até então inéditas destas teóricas. Indico a leitura a todos, sobretudo aos educadores, pois “lugar de fala” é um conceito que deve ser introduzido e naturalizado nas discussões que permeiam o cotidiano escolar para se pensar temas urgentes como a diversidade e a equidade, por exemplo.