Mariana - @escreve.mariana 21/11/2020Sobre vivenciar a sensação de estar à deriva [IG: @epifaniasliterarias_]"Deriva", de Adriana Lisboa, foi meu segundo contato com a autora e as expectativas eram altas, já que li há alguns anos "Sinfonia em branco" (vencedor do Prêmio José Saramago), um livro que me tocou de maneira inexplicável e que é um dos meus favoritos da vida. E digo com tranquilidade que essas expectativas foram superadas. Até mesmo sua obra em prosa é poética, então a experiência com a sua poesia foi encantadora.
Entre o momento em que se abre o paraquedas e o instante em que se atinge o solo, uma medida: deriva. Os versos, aqui, apresentam certas sutilezas, como o vocabulário e os espaços internos entre uma palavra e outra, que fazem ecoar o título do livro. São imagens, momentos, sons, lugares e não-lugares que conduzem o leitor a vivenciar a sensação de estar à deriva - e perceber que o não-pertencimento pode ser a melhor forma de ser e estar no mundo.
"Esfumaçar bordas
destituir centros
incendiar matrizes
um instante de indulto:
estar só no mundo."
Ainda, esse estado de não-pertencer faz com que o eu-lírico perceba seu reflexo como uma neblina no espelho, o que demonstra, sobretudo, seu desejo de não ser definido: "não sei quem plantou / na minha cara uma outra / biografia". Em tempos que instituem padronizações, tempos quadrados, avessos às diferenças, às minorias e à diversidade, faz-se necessário ser também tempo de resistência, a fim de subverter o normativo e esses dias-chumbo que tentam nos sufocar, adoecer e limitar, com uma frequência cotidiana.
"Meu amigo às vezes se diz vencido
ilhado
endividado
aflito
taciturno
furioso
acossado
prende a respiração
sem saber que país o nosso
ou quando
ou como
mas ainda assim
sai à rua
e o mundo se dobra
aos dentes explícitos que ele arrisca
por baixo do veludo do batom."