Ana 11/10/2021
O RESPEITO À AUTONOMIA DO SER E O COMBATE À LÓGICA PRODUTIVISTA NA ACADEMIA
Paulo Freire, em seu livro “Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa”, com sua linguagem poética e ao mesmo tempo política, objetiva abordar algumas exigências que o ato de ensinar requer do educador. Ele traz essas exigências de forma leve e tranquila, com muitos exemplos e linguagem inclusiva, como é de praxe em seus textos, abordando o gênero masculino e feminino. Ele defende veementemente a educação progressista, que leva em consideração a autonomia do ser de todos os educandos.
Paulo Regius Neves Freire, mais conhecido como Paulo Freire, nasceu em 19 de setembro de 1921, em Recife, Pernambuco. As circunstâncias de crise econômica mundial, no final da década de 1920, foram também responsáveis pelo desenvolvimento do seu senso crítico e seu desejo de ajudar as pessoas em situação de vulnerabilidade social. Paulo Freire se formou em Direito, mas se dedicou mais à educação e a desenvolver um revolucionário método de alfabetização. Por muitos anos, ele realizou trabalhos pastorais através da Ação Católica, que se posicionou contra a ditadura e ao lado de movimentos comprometidos com a transformação social. Na década de 1950, o educador viveu sua carreira como professor, com governos que objetivavam a modernização e a industrialização, assim, ele incentivou que o povo fizesse parte desse processo, de forma ativa e crítica, e para tanto, seria necessária uma relação horizontal entre alunos e professores. No governo do presidente João Goulart foi criado o Plano Nacional de Educação (PNA) com objetivo de alfabetizar 5 milhões de pessoas com o Método Paulo Freire. Infelizmente, com o golpe militar, o plano não pôde ser concretizado, e Paulo Freire foi retirado das escolas e enviado para a prisão. Antes da instituição do AI5, ele e sua família conseguiram se exilar, e no Chile desenvolveu seu pensamento e continuou seu trabalho com a Ação Social da Igreja Católica. Também teve que abandonar o Chile por conta do golpe militar em 1973. Foi viver nos Estados Unidos e depois Europa e ajudou países a se descolonizarem através do Instituto de Ação Cultural (IDAC). Com a anistia, com a volta dos artistas e intelectuais exilados e com o processo de redemocratização, Paulo Freire finalmente retornou ao Brasil, tornou-se docente da USP e foi Secretário da Educação em São Paulo quando Luiza Erundina foi prefeita da capital. Em 1997 o nosso querido Patrono da Educação faleceu em decorrência de um ataque cardíaco. Seu corpo se foi, mas suas ideias e suas obras continuam vivas em nossas memórias, nossa prática do dia-a-dia e em nossas lutas.
O livro escolhido para ser resenhado foi publicado em 1996 e esta foi sua última obra publicada em vida. Ele traz muitos aspectos de obras já publicadas anteriormente e a sua defesa por uma escola progressista e democrática está bastante presente em toda sua extensão. O livro é dividido em três grandes capítulos, e dentro de cada capítulo há nove subcapítulos. O primeiro capítulo é intitulado “Prática docente: primeira reflexão”, o segundo capítulo é “Ensinar não é transferir conhecimento” e por fim e não menos importante, o terceiro capítulo se chama “Ensinar é uma especificidade humana”.
No capítulo inicial Paulo Freire traz alguns saberes recomendados aos educadores tais como a rigorosidade metódica, a busca pela estética e ética, o respeito aos saberes dos educandos, a criticidade, a aceitação do novo e a rejeição de qualquer tipo de discriminação, a reflexão crítica sobre a prática, entre outros. Quando Paulo Freire se refere à ética na prática docente, ele se refere ao comprometimento de se posicionar contra as manifestações discriminatórias de gênero, raça e classe, e contra o sistema neoliberal que explora o trabalhador e a trabalhadora. Ele considera essa ética universal indispensável para a convivência humana, cujos agentes são responsáveis por gestar a história socialmente. O autor traz o termo “dodiscência” e explica que não há discência sem docência e não há docência sem discência e “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” e assim ele desdicotimiza essa relação entre o ensino e o aprendizado, reforçando sua ideia de horizontalidade no diálogo entre o educador e o educando. Paulo Freire critica a educação bancária, que é aquela educação na qual os alunos se sentam no banco e, em silêncio, apreendem o conhecimento que lhes é transmitido através do professor. Ele dedica seu capítulo seguinte inteiro a mostrar que ensinar não é transferir conhecimento.
Em seu segundo capítulo, Paulo Freire traz que ensinar exige bom-senso, exige consciência do inacabamento, convicção de que mudar é possível e respeito à autonomia do ser do educando. O processo de ensino passa por criar possibilidades para que o educando construa ou produza por si próprio, pois não há quem saiba tudo e quem saiba nada, todos e todas nós temos algo a aprender e algo a ensinar. E assim Paulo Freire nos alerta sobre o fato de que somos seres inacabados pois “onde há vida, há inacabamento” e a consciência desse inacabamento se faz necessária ao educador. Quando um professor não respeita a linguagem, a inquietude, a curiosidade e o gosto estético do aluno, ele transgride princípios fundamentais de nossa existência e acaba afogando a liberdade do educando, Paulo Freire traz que isso jamais deve ser feito pois a beleza está no diálogo que é estabelecido com o aluno através da escuta, respeito e empatia.
O terceiro capítulo, que é intitulado “Ensinar é uma especificidade humana”, traz logo de início a importância de haver generosidade e o comprometimento com os educandos, a responsabilidade de ser verdadeiro, bem como observação à leitura dos alunos em relação às ações do educador. Educar é um ato político e por isso o professor não deve esconder o seu posicionamento sobre determinado assunto, pois se assim o fizer, estará enganando os seus alunos e a si mesmo. Assim como ele não deve esconder seus posicionamentos, ele deverá também respeitar a bagagem e o conhecimento de mundo que cada aluno traz consigo. Para além da honestidade, Paulo Freire também aborda a coerência, a importância de fazer o que prega e de ser o que se parece ser, pois aí reside o respeito e a honestidade com seus educandos.
Ao entrarmos na universidade, principalmente em cursos de exatas ou áreas afins, não se dialoga sobre a sobrecarga e o conteudismo hegemônico no ambiente universitário. A lógica do professor que tudo sabe e do aluno completamente ignorante é uma realidade em cursos de graduação como Ciências Econômicas, Administração, Relações Internacionais e afins. A educação bancária está ainda muito presente nas universidades, infelizmente. Há um total desrespeito ao conhecimento de mundo prévio dos discentes, indo completamente contra o pensamento de Paulo Freire. Todo conteúdo, sem muitas reflexões, é lançado ao aluno e quando este entra na pós-graduação a lógica produtivista se intensifica. Além da alta carga de conteúdo, muitas vezes num idioma estrangeiro, a cobrança à produção de ciência é uma realidade dos discentes que se propõem a continuar estudando e se aprofundando em alguma área. Não venho defender, através desta crítica, que não se deva produzir conhecimento nas universidades, muito ao contrário. Estamos atravessando um período em que a ciência está sendo desvalorizada, por isso devemos lutar com ideias, palavras, unhas e dentes para a manutenção e desenvolvimento de toda a riqueza intelectual que é produzida no Brasil. O que proponho é uma maior reflexão deste modelo produtivista que muito se assemelha ao modelo fordista de produção industrial no sistema capitalista, no qual as subjetividades e as individualidades são totalmente desconsideradas. O conhecimento de mundo, a autonomia do ser e a história de cada discente muitas vezes não é respeitada, bem como suas realidades materiais e subjetivas de vida. Os prazos, as cobranças, a competitividade e a meritocracia são realidades dos discentes de pós-graduação no Brasil e podem ser até mesmo adoecedoras. Assim, penso que Paulo Freire, com seus princípios de educação libertadora, não encontraria beleza na realidade de cobrança à produtividade na qual estamos submetidos e submetidas no ambiente acadêmico e certamente esses assuntos seriam tratados com mais respeito e atenção.
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