Raul Maciel 17/12/2023
Com tudo que implica ser irmã de Victoria Ocampo, casada com Adolfo Bioy Casares e amiga de Luis Borges, Silvina Ocampo esteve por muito tempo nas sombras dessas importantíssimas figuras da literatura latino-americana, tendo as suas obras bastante ofuscadas não apenas à época, mas por muito tempo. Ela, que viveu entre 1903 e 1993, apenas muito recentemente começou a ter mais espaço no Brasil.
Originalmente publicado em 1959, A fúria e outros contos chegou a nós em 2019, e As Convidadas, de 1961, em 2022, ambos pela Companhia das Letras. Antes da publicação dessas duas coleções de contos — com 34 contos e 224 páginas e 44 contos e 264 páginas, respectivamente —, havia apenas a tradução de poucos contos e isolados.
Em A fúria e outros contos, há uma diversidade enorme nas formas, em narradores e narradoras, bem como em personagens (diferentes gêneros, classes, idades, modos de viver e de ver o mundo — o que inclui até a confusão dos próprios gênero e personalidade por quem escreve, como em A continuação), ambientes em que se os contos se passam e nos conflitos apresentados ao longo das histórias.
Muitos textos são cenas do cotidiano que, em tese, não caminhariam para um desfecho espantoso, mas o fazem. E mesmo quando já passamos da metade do livro e nos acostumamos com a escrita e com a construção das histórias, os contos não se tornam previsíveis ou menos chocantes. Cabe destacar que embora apresentado como literatura fantástica e sendo a maioria dos textos do livro pertencentes a esse gênero, há textos que não carregam elementos fantásticos.
O teor geral dos textos é o de causar um estranhamento, mas não como se neles houvesse a intenção de provocar um certo desconforto ou uma angústia, pois tudo soa natural e real aos personagens. O estranhamento é menos pelas situações e mais pelo modo como os personagens lidam com eles. Há histórias em que tudo é narrado com naturalidade mesmo quando pessoas ao redor demonstram um incômodo com o que a personagem central faz, como em Mimoso, um cachorro que falece e é embalsamado pela sua dona e a relação que se desenvolve passa a incomodar o seu marido e outras pessoas.
O horror e o humor caminham juntos, sendo As fotografias um dos textos que melhor demonstra isso. Nele, as pessoas convidadas levam à exaustão Adriana, a aniversariante, que é cadeirante, para que ela tire fotos e faça poses para fotografias.
"- Ela tinha que ficar de pé - disseram os convidados.
A tia objetou:
- E se os pés saírem mal?
- Não se preocupe - respondeu o amável Spirito -, se não ficarem bem, depois eu corto.
Adriana fez uma careta de dor e o coitado do Spirito teve que a fotografar de novo, afundada em sua cadeira, entre os convidados." (trecho de As fotografias)
"Quando vimos pela primeira vez Ángel Arturo brincando com o revólver, nós três, meu irmão, Leticia e eu, nos olhamos, certamente pensando a mesma coisa. Sorrimos. Nenhum sorriso foi tão compartilhado nem tão eloquente." (trecho de O rebento)
Em diversos contos, são descritas detalhadamente características físicas ou de expressões de personagens, já indicando um certo julgamento de caráter de quem nos conta a história, e também os espaços e cômodos em que as histórias ocorrem, tornando alguns textos bastante imagéticos. Muitas histórias se passam em Buenos Aires, o que percebemos por menções a bairros, ruas e pontos da cidade, mas que também percebemos mesmo quando a escritora não o faz explicitamente.
Algumas vezes, a realidade parece ser apresentada com uma camada fina que pode ser rompida a qualquer momento. Em outras, não há uma ruptura do real para o fantástico, são como um só. Quando há a ruptura, não é como se o desfecho contrariasse a lógica ou negasse a realidade, mas, ao contrário, ele é a própria lógica. E também há situações em que a transição é gradual, como em A casa de açúcar, em que o fantástico se apresenta de forma gradual no tempo, nos processos de cada personagem e também na nossa condução pela leitura. Juntam-se às histórias o misticismo (como em A sibila, em que três amigos vão roubar uma casa e uma menina prevê o desfecho da história), bem como sonhos e delírios (em O mal, em que um doente reflete — ou: tenta — sobre sua internação, seu estado de saúde e sua vida).
"- O que você está fazendo aqui?
- Dando uma espiada. Gosto de ver as vias daqui de cima.
- É um lugar muito sombrio e não gosto que você ande sozinha.
- Não acho tão sombrio. E por que não posso andar sozinha?
- Gosta da fumaça preta das locomotivas?
- Gosto dos meios de transporte. Sonhar com viagens. Ir embora sem ir embora. “Ir e ficar, e ficando, partir.”" (trecho de A casa de açúcar)
"Sonhou que tinha fome. Não havia nada para comer; então tirava do bolso um pedaço de pão tão velho que não conseguia mordê-lo; banhava-o em água, mas continuava igual; finalmente, quando o mordia, seus dentes cavam dentro do único pão que tinha arranjado para se alimentar. O caminho em direção à saúde, em direção à vida, era esse." (trecho de O mal)
Questões materiais e de classe aparecem por meio do confronto de personagens ricas e personagens pobres, da precariedade, do materialismo, mas também quando más condições financeiras limitam as possibilidades e influenciam os rumos dos personagens e quando vemos, por outro lado, que boas condições não as garantem ou são acompanhadas por outros problemas.
As idéias de disputa e de vingança aparecem em diversos textos, como naqueles que abordam relacionamentos entre casais, nos quais ainda vemos o amor e o ódio lado a lado, ciúmes, traições e, às vezes, uma obsessão assustadora por si só.
A perversão e a perversidade aparece em muitos personagens, inclusive nas crianças, que ocupam um lugar muito importante no livro, aparecendo em contos em que são as personagens centrais e em histórias narradas por pessoas adultas que retomam algum acontecimento ou aspecto da sua infância. Em ambas situações, geralmente não há qualquer tipo de julgamento moral, seja pelo fato de haver uma perversão praticada pela criança do conto ou pelo fato de um adulto retomar algum trauma da sua infância, caracterizando um certo tipo de quebra de expectativa com o fato de as crianças não serem ingênuas e de suas maldades também serem completamente normalizadas. Aqui, o infantil nega aquele que idealizamos.
Além dessa capa sensacional, alguns dos textos que mais me chamaram a atenção:
- A casa de açúcar, um casal se muda para uma casa e a mulher passa a mudar seus comportamentos e a sua personalidade, a descrição da evolução e do desenrolar é um espetáculo;
- A casa dos relógios, a relação de adultos e um provável assassinato pelos olhos de uma criança;
- O porão, uma mulher (que, tudo indica, é prostituta) mora em um porão com os ratos; forte do início ao fim, um dos melhores do livro (e cheio de mensagens em apenas três páginas);
- As fotografias, comédia e tragédia; conto riquíssimo na construção das duas situações: a de pessoas preocupadas com fotos e a da aniversariante que vai se cansando; e como uma afeta a outra de forma gradual sem que o final seja percebido ou evitado;
- A propriedade, uma mulher que é funcionária de uma mansão que parece um hotel spa (ou algo assim) e tem uma relação de gratidão em relação à sua patroa, é prejudicada por um novo funcionário e depois se demonstra grata a ele quando ele se torna o seu patrão, mostrando como opera a lógica que faz com que ela se comporte assim;
- Carta perdida em uma gaveta, com um começo marcante (Faz quanto tempo que não penso em outra coisa a não ser em você, imbecil?, você, que se intromete nas linhas do livro que leio, na música que escuto, dentro dos objetos que vejo.), é um dos textos do livro em que amor e ódio caminham juntos;
- O vestido de veludo, uma criança de oito anos acompanha uma modista durante a prova de um vestido de veludo por uma madame, a evolução se torna bem previsível e o que se destaca é como a diferença de classes grita nas falas da madame e como a criança vê a situação toda;
- A paciente e o médico, trata de dependência emocional e obsessão apresentadas por dois pontos de vista;
- Voz ao telefone, não deixem fósforos nas mãos das crianças;
- O castigo, acertar as contas com o passado, hiperproteção que guarda violências e se torna abuso;
- Relatório do Céu e do Inferno, "As leis do Céu e do Inferno são versáteis. Ir a um lugar ou ao outro depende de um ínfimo detalhe".
site: https://medium.com/@raulmaciel/sobre-a-f%C3%BAria-e-outros-contos-da-silvina-ocampo-56ec1e2791f6