Moreira 16/04/2024
Um esboço do que viria a se tornar Dostoiévski
Meu primeiro contato com Dostoiévski foi com ?Diário do Subsolo?. Surgia então um estilo de escrita até então diferente para mim, ímpar, através do fluxo de consciência, percorrendo todos os meandros da vida do herói e os mais profundos aspectos de sua natureza. Lembro que Diário do Subsolo começava com uma leitura difícil, um pouco arrastada, mas na segunda parte já me fisgava por inteiro. Dali em diante, Dostoiévski se tornaria meu autor favorito. Li ?Os Irmãos Karamázov?, considerada sua magnum opus e li também ?Crime e Castigo?, tão boa quanto.
Em todos os livros do autor, notamos essa facilidade de descrever os infortúnios e as alegrias da vida, a beleza e a miséria, o ser humano em seu estado mais filosófico, com todas as suas certezas e contradições pintados num quadro em que a moldura possui característica intrinsecamente espiritual. Dostoiévski era de fato um conservador, mas um conservador profundamente humanista. Ninguém consegue descrever tão bem o homem com todas suas faculdades mentais e suas complexidades como ele.
?Gente pobre? foi a primeira obra de Dostoiévski, publicado ainda em 1846, levando o autor a ser reconhecido imediatamente pela crítica da época. O livro é um romance epistolar sobre a amizade de Makar Dievuchkin, um funcionário público de meia idade e Varvara, uma jovem órfã, que moram na mesma vila em São Petesburgo. Por meio das cartas entre os dois, notamos a situação precária de boa parte da sociedade russa na época czarista. Makar, com motivações verdadeiramente altruístas, procura usar seu ordenado para ajudar a pobre órfã, mesmo que para isso tenha que viver uma vida bem abaixo dos seus meios, chegando a se descuidar de suas necessidades básicas, como suas vestimentas e o seu aluguel. Varvara, alheia ao falatório do povo, insiste em uma maior proximidade por parte do outro, sugerindo que este a venha visitar com mais frequência. No decorrer desse relacionamento, notamos um contraste entre a pobreza em que vivem e a riqueza de seus corações, repletos dos mais nobres ideais.
Talvez por ter tido contato anterior com outras grandes obras de Dostoiévski, neste livro não me impressionei tanto. Por ser seu primeiro livro é natural que seu estilo ainda estivesse se formando e se aperfeiçoaria com o tempo. Caso este tivesse sido o meu primeiro livro do autor, sendo apresentado a esta escrita tão peculiar, provavelmente minhas impressões seriam melhores e talvez, gradualmente, viessem a aumentar conforme lia os demais. Porém, ao ler primeiro as grandes obras e ter um contato posterior com ?Gente pobre?, não fui fisgado da mesma forma. Ainda assim, não deixa de ser uma grande obra, com traços e esboços do que viria a ser a marca do autor no futuro. Vale a pena ler, pois Dostoiévski sempre será Dostoiévski.