Guilherme Duarte 25/06/2020
"Sob a lua, num velho trapiche abandonado, as crianças dormem"
Capitães da Areia havia sido o livro que mais gostei de ler no meu primeiro ano do ensino médio. A história de crianças abandonadas, escrita em uma linguagem fácil, estava longe da dificuldade dos clássicos realistas ou dos monótonos romances indianistas que me foram forçados. 9 anos depois, resolvi fazer uma releitura para me lembrar os motivos que me fizeram gostar tanto do livro, uma vez que minha memória já havia apagado quase a história toda. Felizmente, foi uma das melhores coisas que fiz, pois a maturidade me ajudou a compreender as mensagens que não havia captado quando mais novo. Nos meus 15 anos, eu li uma história. Nos meus 24, eu li uma crítica, um pedido de socorro, uma denúncia.
Nessa segunda leitura descobri que os livros de Jorge Amado foram queimados em praça pública em 1937, quando a bipolaridade política já vigorava no mundo. Hoje em dia os livros continuam sendo queimados, não na fogueira e sim na internet. A inexplicável dicotomia que vivemos hoje, somado à manipulação de discursos pelos espectros políticos em voga, fazem com que o livro seja entendido por muitas pessoas como uma propaganda comunista, e por isso passível de ser execrado. O que eu vejo, mesmo não partilhando dos ideais da esquerda política, é o puro retrato da realidade das pessoas abandonadas nas ruas e da maioria dos presos no nosso atual sistema carcerário.
É interessante notar como Salvador se torna um personagem extremamente influente na história. A cidade, ao mesmo tempo que representa a liberdade dos garotos, representa também o local de penúria, de sofrimento, de uma luta injusta em todos os sentidos. A todo momento os personagens principais são tomados pelo sentimento de tristeza por levarem a vida de furtos e pela marginalização que são submetidos. Acho que nesse sentido, nenhum personagem é mais característico e comovente que o Sem-Pernas. Deficiente físico, manco de uma perna, foi maltratado nas ruas e torturado na cadeia. Aproveitava da deficiência para pedir ajuda nas casas dos ricos, onde o abrigavam (por pena, não por amor), dando a oportunidade de o garoto mapear na casa os produtos do furto que realizará depois. Sem-Pernas sofre todos os dias com a falta do amor de uma família, com a falta de carinho, sente o vazio da solidão de forma mais forte que os outros meninos. Por esse motivo, desenvolveu uma personalidade arisca e debochada, escondendo suas angústias nas brincadeiras impróprias e na violência como forma de defesa. As partes mais tocantes do livro (que me fez chorar algumas vezes) são relacionadas ao Sem-Pernas. A passagem mais emblemática do personagem, sem dúvidas, foi quando chega à casa de D. Ester, com a finalidade de pôr em prática o seu velho golpe. O que não esperava, porém, fosse que D. Ester o tratasse como um filho perdido que volta para casa depois de anos. Não fora colocado para dormir no quarto do empregado, nem colocado em um canto como se tivesse uma doença contagiosa e fosse uma pessoa digna de pena dos corações "cristãos e caridosos" que o acolhem. D. Ester lhe deu carinho, abraço, roupa, o colocou no quarto do filho falecido, se prontificou criá-lo e educá-lo. Sem-Pernas foi tomado por um sentimento de conforto e momentânea felicidade, e depois a culpa o assolou. Não poderia abandonar os Capitães, aqueles que o acolheram quando ninguém o fez, para ser adotado por aquela família, pois os amigos estavam contando com ele para ajuda-los a sobreviverem. Ademais, a culpa de ter entrado na casa de uma mulher tão boa com a finalidade de roubá-la tomou o coração de Sem-Pernas, que não se achava digno de ser acolhido por essa família. Sem-Pernas foge da casa, assustado com os próprios sentimentos e com mais ódio do que quando chegara no seio da família. Sem-Pernas descreve tudo aquilo que ouvimos falar de psicólogos sobre o comportamento de crianças abandonas, e a intimidade com que Jorge Amado descreve seus sentimentos e aflições tomam o leitor de forma arrebatadora.
Outro personagem que chamou minha atenção foi o Padre José Pedro. De origem humilde e sem ambições profundas no coração (a não ser o desejo de ter sua própria Paróquia), José Pedro estende o braço para as crianças abandonadas em vários momentos da história, sem julgamentos e sem exortações. Seu maior desejo é recuperar essas crianças e pra isso se torna amigo delas. Interessante notar a crítica que Jorge Amado faz com relação à Igreja Católica de 1937, e que pode facilmente ser transposto para as diversas congregações religiosas desse século. Os ensinamentos de Jesus a respeito de caridade e amor ao próximo é deixado de lado em prol dos interesses particulares do Alto Clero e dos fiéis ricos e segregacionistas. Para os bispos e beatas que ficam de olho no Padre, ele comete um crime contra as leis de Deus ao ajudar as crianças abandonadas, um comportamento mais de uma vez rechaçado pelos seus superiores como um comportamento tipicamente comunista. Afinal de contas o Padre prega que as crianças são dignas de amor e carinho (Então disse Jesus: "Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas"), enquanto o Clero não os via a não ser como bandidos dignos do inferno. Afinal, se a Igreja recebe dinheiro da classe abastada, deve defender os interesses dela acima dos interesses de cunho humanitário que pregava Jesus.
Nesse ponto, entramos no assunto mais atual que o livro nos traz: bandido bom é bandido morto? Jorge Amado nos traz à tona como a importância da igualdade de oportunidades, e a falta que uma família bem estruturada, uma educação de qualidade e o amor fazem com o ser humano. A crítica à sociedade e ao sistema carcerário já são colocados logo no primeiro capítulo do livro. O Reformatório de Menores, que pratica tortura e trabalhos forçados para "recuperar" os infratores, ao invés de dá-los educação e oportunidade, reflete que os vícios do sistema carcerário atual. A maioria dos presos estão trancados por crimes simples e de menor (ou quase nenhum) potencial ofensivo. As cadeias estão lotadas, o ambiente é degradante, e o sentimento de ódio e humilhação crescem no coração desses homens, que não veem motivo em obedecer ao sistema que os trata como animais. Nesse sentido, não dá pra julgar a revolta de Volta-Seca com o sistema e a polícia e sua admiração por Lampião, seu padrinho. As crianças conheceram do Governo e da sociedade apenas a aversão, a violência, a marginalização. E o sentimento de liberdade que toma o coração dos meninos não os deixa se submeter à essas injustiças.
Diante de todas essas circunstâncias, a leitura choca por mostrar crianças que perderam a inocência e o direito inalienável de serem felizes verdadeiramente, o que constantemente faz o leitor esquecer que se tratam de crianças de 6 a 16 anos. A sexualidade precoce, o comportamento adulto, o uso de drogas, desenham nas feições dos garotos uma realidade que não deveriam fazer parte de suas vidas. Nas últimas passagens do livro é falado: “Quando eram presos apanhavam surras como homens. Por vezes, assaltavam com armas nas mãos como os mais temíveis bandidos da Bahia. Não tinham também conversas de menino, conversavam como homens. Sentiam mesmo como homens. Quando outras crianças só se preocupavam em brincar, estudar livros para aprender a ler, eles se viam envolvidos em acontecimentos que ó os homens sabiam resolver. Sempre tinham sido como homens na sua vida de miséria e aventura, nunca tinham sido perfeitamente crianças. Por que o que faz a criança é o ambiente de casa, pai, mãe, nenhuma responsabilidade. Nunca eles tiveram pai e mãe na vida da rua. E tiveram sempre que cuidar de si mesmos, foram sempre os responsáveis por si. Tinham sido sempre iguais a homens.”
Capitães da Areia nos lembra que para toda a história existem dois lados. Entender a realidade dessas crianças abandonadas, suas lutas, seus anseios, seus sentimentos, nos levam ao exercício da empatia. Antes de julgar, temos que nos colocar na realidade do outro, entender o que o levou para aquela situação, e como podemos fazer para ajudar, de forma a mostrar que essa pessoa é um ser humano que merece amor e oportunidades como qualquer outro, que merece ser feliz. Capitães da Areia é atemporal, e nos ensina como nenhum outro que nossa responsabilidade para os abandonados e indefesos vai além da pena e da esmola.