tha_rbrandao 26/04/2024
?Quando observavam o mundo, o mundo também os observava?
Esquisito. Se há uma palavra com capacidade de sintetizar tudo o que pensei e senti ao ler esse livro, essa palavra é: esquisito. Mas veja bem, isso de modo algum é algo ruim.
Já pela sinopse sabemos que nossa aventura será em uma casa labiríntica que possui corredores infinitos e incontáveis estátuas de mármore, mas, não bastava somente a história se passar em um lugar como esse, a própria narrativa é um labirinto que precisamos desvendar.
Piranesi, um dos únicos habitantes desta casa, - com exceção, é claro, dos peixes dos Salões Inundados e das aves que vêm e vão - é o nosso protagonista, quem nos guiará através dos salões banhados pelas marés oceânicas. De uma inocência pura, quase infantil, esperto, avassaladoramente humilde e de uma honestidade tremenda, ele consegue nos conduzir com amabilidade, conquistando nosso carinho e sendo uma excelente companhia nessa jornada. É impossível não se afeiçoar a ele.
Mas quanto a Piranesi - o livro, não o personagem - não irei mentir: Esse foi o livro mais desafiador que li esse ano, o mais difícil de compreender, resenhar e, principalmente, avaliar. À primeira vista, eu fiquei verdadeiramente desorientada. Tenho hábito de iniciar leituras com pouquíssima ou quase nenhuma informação sobre o conteúdo, pois acho que assim evito que a expectativa influencie minha percepção, e não fiz diferente com esse aqui. Comecei já logo tendo que me esforçar muito para me situar e mesmo assim continuei confusa por um bom tempo. Sabe quando nada faz sentido e ao invés de travar, você só abraça e vai? Pois é.
Eu insisti e daí, quando finalmente terminei de ler e tive a visão do todo, consegui finalmente entender e captar a profundidade dessa obra. E portanto, quero discorrer sobre minha interpretação: Ao meu ver esse livro tem duas camadas, duas narrativas: uma óbvia e outra subjetiva. A primeira é a jornada fantástica de um homem em um labirinto. A segunda, muito mais abstrata, é sujeita àquilo que você compreende dela. É como um borrão de Rorschach que você olha de um lado, olha do outro e depois se pergunta: o que eu estou vendo?
Assistindo algumas resenhas vi que algumas pessoas leram as entrelinhas interpretando que tudo é uma metáfora para doenças mentais, sendo tudo uma grande alucinação. Mas acho essa teoria clichê e nenhum pouco interessante. Na verdade, parece que hoje em dia todos querem um diagnóstico clínico para chamar de seu e não me agrada em nada essa linha de raciocínio. Minha interpretação é muito mais relacionada com a metafísica.
ATENÇÃO: Vou trazer pontos que podem ser spoilers! Sugiro que leia somente se já concluiu o livro.
Durante algum tempo acompanhamos o Outro tentando encontrar um Grande e Secreto Conhecimento que, de acordo com Laurence, é o que permitia ao homem antigo comunicar-se com o mundo e perceber que este o respondia, agindo de maneira ativa no externo e totalmente consciente do que é.
O Outro acreditava que esse conhecimento conferiria poder a ele, mas nunca o encontrou de fato. Piranesi, por outro lado, concluiu com satisfação que tal coisa não existe. Afinal, para ele o mundo ao seu redor, a Casa, basta. Aos seus olhos é um imenso privilégio estar vivo e poder contemplar a beleza do mundo e ser beneficiário de suas graças. Nas palavras dele:
?A Casa tem Valor porque é a Casa. É suficiente por Si e em Si. Não é o meio para um fim.?
Mas e se esse conhecimento for a tal conexão que o próprio Piranesi experimenta estando na Casa? Pensando nisso me veio à mente um eremita, um homem que, para ter uma profunda conexão com algo superior que rege tudo que existe, e a partir disso, ter uma melhor compreensão de si mesmo, isola-se em uma solidão contemplativa. E com isso me pergunto: o que o silêncio, a solidão e a vastidão faz com a mente de uma pessoa? O mundo em que vivemos é um mundo de progresso, de caos, de individualidade e ruído, que nos obriga a enfiarmos-nos cada vez mais em nossas próprias cabeças, nos fechando para o ambiente que nos cerca. Mas a Casa é o oposto; ali é tudo muito simples, quieto e belo. Para alguns isso pode ser enlouquecedor, mas para outros, pode proporcionar um estado de paz contínua e segura, como no caso de Piranesi, que se vê como parte integrante da própria essência do Mundo e, igualmente, se considera o Filho Amado da Casa.
Sendo assim, ao Piranesi se distanciar do mundo telúrico e egoísta, condicionado a viver na Casa - mesmo que de maneira não proposital -, esquecendo pouco a pouco tudo que foge desta, acabou absorvendo o conhecimento dos antigos. Ele se tornou capaz de ouvir o que o mundo lhe sussurra e ver seus sinais.
Em minhas pesquisas vi que a Susanna Clarke bebeu de muitas fontes para compor esse livro. Podemos pensar no Mito da Caverna de Platão assim como seu conceito de ?Mundo das Ideias?, um pouco de C.S. Lewis, além de também termos a direta influência de Borges assim como a referência explícita ao Giovanni Battista Piranesi, arquiteto italiano que empresta o nome ao nosso protagonista, autor da obra ?Prisões Imaginárias? que inspirou a ideia da casa com salas subterrâneas, escadas gigantescas e enormes salões.
Ciente disso tudo, e levando principalmente em conta o título da obra de Piranesi - o arquiteto, não o personagem -, não consigo pensar na Casa como sendo uma prisão. Afinal, por essência, a Casa é um fluxo de consciência que se materializou, é o Mundo das Ideias tangível e alcançável, e como a consciência por si só é algo infindável, a própria Casa também o é. Ao menos para mim isso soa quase como uma entidade viva. Pode ser feito da própria essência da natureza; as energias cósmicas que envolvem a criação ou uma divindade, até mesmo Deus - você escolhe como prefere enxergar. Mas de todo modo, como algo assim poderia se assemelhar com uma prisão? Para mim, prisão é viver em um mundo tão precioso e não ser capaz de perceber isso.
E portanto, em minha leitura, a Casa é tudo que há e tudo que existe é a Casa, e mesmo que as vezes pareça perigoso habitá-la, se você confiar e estiver atento para ouvir e ver, perceberá que a Beleza da Casa é imensurável, e acima de tudo, sua Bondade; sempre infinita.