mpettrus 28/12/2022
A Redenção das Fraturas de Sobrevivência
?Ocean Vuong nasceu em Saigon, Vietnã, mas foi criado em Hartford, Connecticut nos EUA, no seio de uma família de mulheres trabalhadoras de salões de beleza. Sua família mudou-se para a ?América? quando ele ainda era um bebê. A sua educação foi permeada por percalços e dificuldades, mas ele conseguiu se matricular, já adulto, no Brooklyn College, onde se formou em ?Literatura Americana do Século XIX?. Ganhou projeção nacional com o lançamento de um livro de poesias, ganhador de vários prêmios, como por exemplo, TS Eliot, nos EUA, com o poético título ?Céu Noturno Crivado de Balas?. Em 2019, Vuong se aventurou na prosa lançando um romance com também poético título ?Sobre a Terra Somos Belos Por Um Instante?, que me deixou devastado com o coração em pedaços, ao fim da leitura dessa carta de um filho para a sua mãe.
Esse romance é uma carta de um jovem filho vietnamita para sua mãe analfabeta, nos contando em um relato muito íntimo e pessoal, a história de sua família no Vietnã e seus episódios agridoces no norte da América em uma narrativa brutalmente honesta sobre raça, classe e masculinidade. É um romance assustadoramente belo nos mostrando um retrato doloroso, mas extraordinário, de uma família de imigrantes asiáticos na América, um primeiro amor entre dois rapazes e o poder redentor da narrativa.
Em meio a tanto desalento, abandono e solidão, o narrador ainda consegue soprar o desespero de estar vivo com uma beleza selvagem. Fiquei chocado. Chocado porque esse autor é jovem, muito jovem, e ele consegue imprimir uma voz no eu-lírico assustadoramente profunda, rica em sabedoria e compaixão. A escrita lírica e chocantemente íntima revela uma narrativa fraturada de uma família dividida entre culturas díspares não tão brevemente belos, mas permanentemente belos.
? A ideia de escrever uma carta a um destinatário analfabeto foi muito emblemática, porque a mãe me pareceu muito distante dele, como se fisicamente ela não existisse mais, porém, continuando vivíssima em suas memórias. E essas memórias são como fantasmas que permeiam suas lembranças.
O fantasma, como sabemos, é sobre o passado que atravessa vários mundos ? leia-se aqui, presente e o próximo futuro ? passando e invadindo se apegando a algo que já se foi e que se encontra fora de alcance, permanecendo assim inconsolável para sempre, permanecendo a margem da existência do eu-lírico, mas sonhando encontrar a sua alma onde possa repousar suas lembranças, para, finalmente, o fantasma se lembrar. E ao fim da leitura, eu compreendi que o fantasma é a mãe, distante e inalcançável. Fiquei destroçado.
?O autor é poeta. Logo, encontrar um tom poético na prosa é recorrente. São poemas em prosa, cada um capturando um momento, uma memória, um sentimento e a suposição do ?e se? tão lindamente narrada pelo eu-lírico. Não considerei o texto cronológico, pois o narrador traça um vertiginoso caminho de memórias emaranhadas por uma bússola de um andarilho que ao mesmo tempo em que se desvia da história, ele a recompõe, a reafirma voltando no tempo, recordando-a chamando-a de volta, porque o eu-lírico é a própria personificação da inquietação. E, por ser inquieto, não existe, ao menos para mim, a menor possibilidade de ser cronológico, de ter uma estrutura narrativa regular, mas sim uma série de fragmentos ou momentos.
E por essa maneira de contar a história, fragmentada e irregular, mas que ao final encontramos sentido em suas palavras, é que Vuong nos entrega um romance com uma seriedade honestamente crua. Há algo na sua história que nos diz que vem de um lugar de verdade, não somente pela crueza bela de suas lembranças, mas porque o autor se baseia em eventos históricos para tecer sua história fictícia com cada dimensão da nossa realidade, ou especificamente, de sua realidade.
E, para mim, as suas vozes não se misturam. Eu consigo identificar a voz do eu-lírico, o ?Cachorrinho?, e o quão invisível se encontra a voz do próprio autor dentro do texto. Eu fiquei encantado em perceber a voz do eu-lírico enquanto criança, bem como, enquanto adolescente e quase ao fim da história, enquanto adulto. E, entre elas, de maneira sutil, quase apagada, a voz de Vuong. Isso é tão raro de acontecer e é uma façanha incrível.
Esse livro me destruiu quebrando a minha alma, coração e mente e depois me refez e me reconstruiu tudo ao mesmo tempo. É implacável em sua dor, realidade e beleza. Cada frase era um arranhão na minha pele e cada quebra de parágrafo era um corte na minha alma. A narrativa dessa prosa poética é insuportável e pesada demais para não ser sentida, por isso o colapso é inevitável.
E, olha a ironia aqui, compreendi o colapso nessa história como a salvação do eu-lírico, ou a minha salvação enquanto leitor. Por que, enquanto leitor, esse romance me fez compreender que há arte nos escombros e promessas de recomeçar. As fraturas não são passíveis de sobrevivência, elas também são um trampolim para seguir em frente, porque tudo transcende e se transforma em algo literalmente próximo da redenção.
Inegavelmente belo e breve, embora seja um livro curto, não é uma leitura leve, tampouco, fácil de ser digerida. Eu digo a vocês, meus bacanos, que o autor não escreveu um livro, ele simplesmente abriu seu coração e o deixou sangrar por todas as páginas abrindo assim o meu coração, deixando-o do avesso. Estou infinitamente maravilhado.
E é horripilantemente sinestésico, tátil, palpável. É como se eu pudesse tocar a melancolia do eu-lírico, o ?Cachorrinho?, o que me fez perceber que a força desse romance também está nas especificidades vistas, cheiradas e provadas capturando sensações fugazes de um momento real das páginas das ilusões de sua vida.
Eu nunca vou esquecer do momento em que sentir o sal do pescoço de Trevor e o quanto isso me deixou arrepiado. Porém, não menos triste. Porque logo em seguida, antes do ponto final dessa prosa assombrosamente moribunda, compreendi que podemos ser belos aqui na Terra por um breve período de tempo, mas este livro será belo para sempre na estante da minha biblioteca.