Livrendo 24/07/2023
AMEI DEMAIS.
O adolescente Alex e sua gangue de “druguis” estão tão à parte da sociedade britânica que se comunicam por um idioma quase totalmente diferente batizado de nadsat, reflexo da formação de Burgess como linguista, e influenciada pelas gírias russo-inglesas da época. Alex não só pensa e se comunica neste vocabulário bizarro, como também narra toda a história em primeira pessoa, o que, apesar de fazer maravilhas pela ambientação, torna a leitura mais lenta e até impossível sem a ajuda do dicionário de termos ao fim do livro. Além de todas as palavras inventadas, Laranja Mecânica tem uma quantidade quase desesperadora de “tipo assim” e outras gírias com que estamos mais acostumados, dando-nos a sensação real de estarmos ouvindo um adolescente de vocabulário viciado durante quase duzentas páginas.
Contrabalanceando todo o caos e horror causado pela gangue de Alex, ele próprio apresenta um nível de cultura e refinamento muito elevado para qualquer garoto de quinze anos. Grande fã de música clássica, sobretudo Beethoven, o garoto manipula facilmente os próprios pais, atuando como o filho educado e cuidadoso que não se sente muito bem para ir para a escola esta manhã, mamãe. Ao mesmo tempo, ele exerce um controle ditatorial sobre os outros jovens de sua gangue, fazendo de sua palavra lei.
Ele talvez conseguisse manipular o leitor também, se todas as cenas de roubos, agressões e estupros em Laranja Mecânica não fossem descritas com tamanho detalhamento. Alex assume o trabalho de narrador com tanta intimidade que ele compartilha com você sem medo qualquer um de seus pensamentos, não te poupando detalhes, ainda que uma coisa sempre lhe falte: motivo. Não há motivo, raiva ou negligência que sequer comecem a justificar o comportamento horrorshow e ultraviolento de Alex. É absolutamente gratuito, não há outra emoção além da sede de poder, do sentimento de superioridade, da adrenalina ou do efeito das drogas que ele, como um bom menino, dissolve em leite em seu bar favorito. Enquanto estupra pré-adolescentes drogadas, espanca um mendigo até a quase morte ou entra em brigas armadas com as gangues rivais, Alex se sente invencível.
É justamente esta sensação de invencibilidade que causa a decadência do reino de violência do garoto: abandonado pela própria gangue em uma aventura que não vai exatamente como o planejado, Alex descobre que as consequências de seus atos vão muito além de uma bronca ou uma ida rápida ao reformatório. Aos quinze anos de idade, ele vai preso, e na prisão ele entra em contato com a inovadora Técnica Ludovico, que todos nós já conhecemos tão bem pela adaptação cinematográfica de Stanley Kubrick.
Em uma sociedade onde a ultraviolência é perfeitamente normal e até esperada dos adolescentes, tamanha a distopia que Laranja Mecânica representa, Alex é submetido a um condicionamento que o torna fisicamente incapaz de sequer estar próximo de qualquer insinuação de agressividade. Em consequência, ouvir sua música favorita causa nele o mesmo efeito. Alex se vê livre, porém forçado a tornar-se um jovem como eu e você, em um mundo onde nem eu e nem você sobreviveríamos. Apenas com o protagonista fragilizado desta forma é que nós descobrimos que a violência não é algo esperado apenas dos jovens druguis. Alex torna-se vítima de velhinhos raivosos e policiais abusivos, e a única pessoa que lhe demonstra compaixão é uma de suas antigas vítimas, que não o reconhece. O escritor F. Alexander, que trabalhava no manuscrito intitulado Laranja Mecânica na época em que sua casa foi invadida pela gangue, vê em Alex uma oportunidade de criticar efetivamente o sistema político atual, que força jovens saudáveis a experimentos ainda não testados e os condiciona como animais. Aos poucos, nós descobrimos que os revoltados de Alexander são tão cruéis e vingativos quanto o próprio garoto, ainda que neles exista, também, um novo tipo de violência, além de toda a crítica sobre a intervenção do Estado e a liberdade pessoal.Resenhando o livro eu tive uma opinião totalmente diferente de quando o li, e devo dizer que hoje em dia gosto de Laranja Mecânica muito mais. É difícil termos uma dimensão do quão distópico e terrível é a Inglaterra ficcional de Burgess logo de cara. Estamos tão aterrorizados com nosso anfitrião que não damos a devida atenção ao fato de que mesmo o prédio de alta-classe em que seus pais moram está absolutamente depredado em todas as áreas sociais, ou ao fato de que seus pais pouco se importam se ele está preso, vivo ou morto. Alex é, de fato, um narrador tão impecável que nós não conseguimos prestar atenção em mais nada além dele. Para Anthony Burgess, o futuro é um ambiente bestial e hostil, em que a sobrevivência vem com um alto preço e ninguém tem a menor ideia de como a sociedade conseguiu evoluir até aqui.
Desnecessário dizer que o livro sofreu intensa censura e repressão em vários países desde o momento de sua publicação, tanto pela brutalidade da narrativa explícita quanto pela ideia que era desenvolvida por trás. O capítulo final, a grande cereja do bolo, foi omitida das edições americanas por anos, numa tentativa pouco eficiente de dar ao leitor um falso senso de justiça – cuja inexistência é apontada em cada ato de violência de cada um dos personagens. O próprio Kubrick baseou-se neste final incompleto para o seu clássico do cinema, comprometendo toda a ideia da história original, e daí justificando-se a insatisfação do autor com a adaptação.O final do livro se revolve em uma inesperada metanoia, ou seja, uma intensa transformação de espírito e de caráter por parte do protagonista. É o próprio Alex que nos escancara a terrível e inevitável natureza de seu mundo com uma frieza que apenas ele seria capaz: discutindo conosco com consciência e tranquilidade sua realização de que nem mesmo ele será capaz de lutar contra o tempo e a natureza doentia das pessoas. Já com dezoito anos, ele passa a caminhar para a posição inevitável de vítima. Chances são que seus filhos, e a sociedade como um todo, tornem-se ainda mais violentos do que em seus anos de juventude. O tempo passa, o mundo gira, e um alfa envelhecido está fadado a ser dilacerado por um jovem cheio de energia, sem que nada possa ser feito a respeito. E que assim seja, ou, como vosso jovem Alex diria, e aquela kal total.
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