Coisas de Mineira 28/12/2022
ÁUREO É UMA RECONTAGEM MÁGICA E SOMBRIA DO CONTO DE RUMPELSTILTSKIN
Uma fantasia encantadora com uma contadora de histórias criativa, Áureo reconta as aventuras de Rumpelstiltskin, numa versão mais sombria e cativante.
Áureo é o mais novo lançamento da autora Marisa Meyer, que brilha com seus recontos de contos de fadas, e chegou ao Brasil sem muito alarde pela Editora Rocco. Dessa vez, ela traz uma releitura assombrada de Rumpelstiltskin.
Para situar melhor o reconto, acho importante um resumo do conto original dos Irmãos Grimm. Um duende ajuda a filha de um moleiro, que mentiu para o rei dizendo que a filha é capaz de fiar palha e transformá-la em ouro. O Rei chama a moça, fecha-a numa torre com palha e uma roda de fiar, e exige que ela faça a sua mágica até o dia seguinte, durante três noites, ou será executada. Ela fica em pânico, até que aparece um duende no quarto e transforma toda a palha em ouro, mas quer um pagamento: na primeira noite, seu colar; na noite seguinte, o seu anel. Na terceira noite, quando ela não tinha nada para lhe dar, o duende aceita fiar o ouro em troca de seu hipotético filho primogênito.
O Rei fica impressionado, casa-se com a moça, e, quando ela finalmente dá à luz, tenta escapar do pacto. O duende volta para cobrar o pagamento, mas aceita fazer uma troca: a rainha poderia ficar com a criança se ela conseguisse adivinhar o nome dele no prazo de três dias – o que ela faz depois de ouvir Rumpeltstiltskin cantando sobre si mesmo. Frustrado, o duende deixa a rainha, seu rei e seu filho em paz.
O nome Rumpelstilzchen é de origem alemã – e por isso a autora utiliza de várias expressões e nomes nessa língua. Rumpelstilt ou Rumpelstilz era o nome de um tipo de duende, também chamado de pophart ou poppart, que faz barulhos como batidas em madeira. O significado é semelhante ao de “rumpelgeist” (“barulho fantasma”) ou poltergeist, um espírito travesso que faz barulho e move objetos domésticos. Pode parecer muita informação, mas com certeza essas dicas vão lhe ajudar a entrar mais rápido no livro.
"Mas toda história tem dois lados. O herói e o vilão. A escuridão e a luz. A benção e a maldição. E o que o moleiro não entendeu é que o deus das histórias também é o deus das mentiras."
RESENHA DO LIVRO ÁUREO, DE MARISSA MEYER
Áureo nos apresenta Serilda, uma garota de dezoito anos. Segundo uma lenda em sua vila, ela foi “amaldiçoada” pelo deus trapaceiro Wyrdith, que lhe deixou uma característica peculiar: seus olhos possuem curiosos raios dourados. É ajudante da professora da escolinha local, e conta histórias fabulosas. Entretanto, os adultos não confiam nela, que acaba meio isolada. No entanto, ela se delicia enquanto contadora de estórias, que curam um pouco as feridas do fato de sua mãe ter desaparecido, bem como da falta de perspectivas de um casamento.
A história favorita das crianças é aquela sobre a Caçada Selvagem. Durante a lua cheia, o véu que separa o reino mortal do mágico desaparece, e o Rei Erlking conduz as almas dos mortos-vivos em uma caçada, que aterroriza os mortais e captura as feras mais exóticas. As crianças se divertem!
Na noite da Lua de Neve, Serilda escuta os uivos da caçada se aproximando de sua aldeia. Ela cuidadosamente abre a porta para encontrar duas donzelas do musgo, que estão fugindo do rei. Serilda esconde as donzelas, até que o próprio Erlking chega à sua porta, e é quando a moça faz o que está acostumada a fazer: conta uma estória, sobre como ela pode transformar palha em ouro.
"Há muito se sabe que, quando a caçada selvagem cavalga sob uma lua cheia, eles frequentemente reivindicam para si almas perdidas e infelizes, atraindo-as a seu caminho de destruição."
ÁUREO: SERILDA DESCOBRE QUE MENTIRAS TEM PERNAS CURTAS
Em um primeiro momento, o Erkling parece acreditar, e vai embora. Serilda julga que deu tudo certo, até que a próxima lua cheia chega, e o rei bate à sua porta. Ela é sequestrada, trancada em uma masmorra cheia de palha e com uma máquina de fiar, e deve transformar tudo em ouro, ou será morta. Ela entra em pânico, e reza para todos os deuses, até que um garoto misterioso aparece, e diz que vai ajudá-la, por um preço. Mas quem é ele e o que ele quer com ela? À medida que os dois se conhecem, seus destinos se entrelaçam na batalha épica de Serilda para se libertar das garras do Erlking.
Antes de mais nada, Áureo não tem qualquer relação com as Crônicas Lunares, e é a volta da autora para o que ela faz de melhor: os recontos. Instant Karma foi seu passeio por romance contemporâneo, e eu sinceramente não curti muito. Em Áureo, ela está impecável.
Áureo cobre seis ciclos lunares, quando Serilda poderia confessar sua mentira. Mas a cada lua que passa mais ela se aprofunda nas mentiras e suas consequências. Mas são essas estórias que nos cativam, já que ela é uma ótima contadora de estórias. As reviravoltas vão se tornando mais e mais fantásticas, até que parecem se confundir com sua vida real. Ao mesmo tempo que levam Serilda para o sombrio, também trazem novos amigos e aliados.
"Basta passar tempo o bastante com os sombrios para saber que às vezes as coisas menos confiáveis são também as mais belas"
UMA CONSTRUÇÃO DE MUNDO COMO SÓ A AUTORA CONSEGUE FAZER
Marissa Meyer consegue dar uma credibilidade para a construção dos seus mundos como ninguém – sim, sou fã! Abrir Áureo é como entrar em um mundo de fantasia que nos atrai pelas descrições, fábulas e até mesmo por um romance improvável. A capacidade de construir lugares e castelos é tão gráfica que se torna imersiva. Talvez alguns leitores possam sentir o início mais lento, mas livros de fantasia geralmente se iniciam assim, dando ao leitor o tempo necessário para se acomodar à trama.
Além disso, talvez para respeitar o que poderia ser a origem do conto, a autora escolhe algumas palavras no idioma original – o alemão, como Märchenfeld (a vila de Serilda, que poderia ser traduzido como um campo de fadas), Verloren (o mundo do além), Nachtkrapp (uma espécie de corvo sem olhos), Salige Frauen (criaturas que assombram pontes, cemitérios e corpos d’água).
É uma estória sedutora… ambientada em um período medieval, traz duendes, donzelas de musgo, bruxas, fadas, princesas roubadas, crianças roubadas, monstros, castelos em ruínas, masmorras e torres. Existem fantasmas, ghouls, espíritos, feitiços, maldições e encantamentos – além do cruel e vingativo Erlking. Além disso, é o primeiro livro em que os personagens fazem sexo – não se preocupe, não há detalhes, mas a menção, de uma forma bem bonita e lírica. Claro que há suposição nos outros livros, mas aqui temos certeza.
"Um garoto e uma garota que haviam recebido poucas oportunidades de ter um romance, dominados, enfim, por um desejo fervoroso."
AÚREO TEM HISTÓRIA DENTRO DA HISTÓRIA
Áureo, no entanto, acaba se afastando do Rumpelstiltskin original, pois o personagem é sensível e vulnerável. Claro que existem alguns problemas, como os diálogos, muito afiados para a era que representa, já que Serilda tem uma língua ferina. Mas ela brilha ao contar estórias sobre deuses não binários para ensinar às crianças que elas podem estar além dos papéis de gênero impostos por sua sociedade. Também pesa o romance – ele é de fato um instalove. Faltou um pouquinho mais de desenvolvimento, mas eu achei fofo.
À medida que a estória avança, somos levados para os dois lados do véu numa grande velocidade, deixando o leitor tão desorientado quando Serilda. Ela começa o livro tomando atitudes bem levianas, mas essa desorientação vai chegando no eixo quando ela sente as consequências das suas ações, talvez também por perceber o verdadeiro poder das suas estórias. É quando decide tomar as rédeas da sua própria vida.
É um conto sombrio e cativante, cheio de medo, arrepios, vingança, ódio e terror. Um romance, meio sem esperança. Os personagens são criados de forma brilhante e ganham vida diante de seus olhos com todas as várias luas cheias brilhando intensamente sobre eles. O livro termina com um grande gancho para o segundo livro, ainda não publicado no Brasil, mas que já está disponível no original, com o título de Cursed. Eu estou ansiosa com todo o suspense criado em torno de Serilda, Áureo e o Erlking.
"Em resposta, o garoto deu um sorrisinho torto. Era o tipo de expressão feita para guardar segredos: oblíqua e risonha, com manchinhas douradas brilhando nos olhos."
Por: Maísa Carvalho
Site: www.coisasdemineira.com/2022/12/aureo-marissa-meyer-resenha-do-livro