Gabrieli Gudniak 23/12/2017"Heitor por acaso me fez algum mal?"Pátroclo, filho de Menécio, após acidentalmente matar um garoto, é exilado na Fítia; é lá onde conhece Aquiles, príncipe de Fítia, um semideus destinado a ser o maior guerreiro de seu tempo, duas vezes mais poderoso que o pai, filho de Tétis e Peleu. Os meninos logo se tornam amigos, os anos se passam e o amor passa de fraternal a romântico.
Eu comecei esse livro de braços e coração abertos para os personagens, já tinha ouvido falar dele brevemente, em algum ou outro canal do booktube, e uma ilustração que encontrei me fez decidir do nada que iria ler a história. Sabia que o livro era baseado na Ilíada, então resolvi não ler nada sobre ele, já imaginando que teria um tom trágico, afinal, se é a Canção de Aquiles, todos sabem qual é o final da história, qual é o destino de Aquiles. Definitivamente, não estava pronta para a avalanche de emoções.
Estranhei em um primeiro momento, estava pronta para acompanhar a Guerra de Tróia, mas o livro era narrado por um garotinho cujo nome eu me lembrava vagamente da versão resumida que li quando era criança da Ilíada. O que ele teria a ver com Aquiles? Continuei a história, e, quando dei por mim, já estava quase na metade do livro.
A relação dos dois era tão pura e verdadeira, foi um deleite acompanhar seu desenvolvimento enquanto os dois cresciam e amadureciam, descobrindo a si mesmos e seus sentimentos. É algo natural ao ponto que não há motivos para questionamento, Aquiles e Pátroclo estão sempre juntos, sempre se tocando, os olhos buscando um ao outro, as pessoas dizem que eles não deveriam passar tanto tempo juntos, que deveriam encontrar garotas para si, mas ninguém nunca questiona o amor deles.
"Éramos como deuses na alvora do mundo e nossa alegria chegou a um ponto tal que só conseguíamos perceber um ao outro."
A guerra em si só acontece depois da metade do livro, quando o leitor já está apegado ao personagem e, no meu caso ao menos, perguntando-se o que será dos dois durante as batalhas implacáveis. Até perceber que é para isso que Aquiles foi feito, que esta é a sua natureza e ele não pode escapar dela.
"— Está com medo? — perguntei. Ouviu-se o primeiro chamado do rouxinol nas árvores às nossas costas.
— Não — ele respondeu. — Foi para isso que nasci."
É algo que dói perceber, assim como Pátroclo, sabemos que Aquiles nunca voltará da guerra, e que tudo o que restará dele será sua fama, que nunca poderia escapar de seu destino, que irão lembrar-se do guerreiro implacável, não do garoto confiante e sem malícia que conhecíamos, o garoto que dedilhava a lira e compunha canções.
"Calculei, de súbito, o peso das palavras do centauro: o mundo iria dizer que a guerra era o destino para o qual nascera Aquiles. Que suas mãos e seus pés velozes tinham sido feitos para isto apenas: a ruína das poderosas mulharas de Troia. Aquiles seria lançado do meio de milhares de lanças troianas e todos aplaudiriam triunfantes suas mãos manchadas de sangue."
Durante a primeira metade da história conhecemos um grande número de personagens, e consigo me lembrar de todos com muita clareza, até os menores. Madeline Miller deu voz a estas figuras que não são lembradas como os demais. A sabedoria calma de Quíron, a gentileza de Peleu, a desesperança de Licomedes, Tétis, sempre implacável, a desesperança e ruína de Deidâmia — usada por deuses e homens, esquecida por todos.
"O que Deidâmia pensou que fosse acontecer, perguntei-me, quando fizera as mulheres dançarem para mim? Será que ela supôs realmente que eu não o reconheceria? Pois se poderia reconhecê-lo por um toque, por seu cheiro! Poderia reconhecê-lo mesmo estando cego — somento pelo ruído de sua respiração ou pelo som de seus passos. Poderia reconhecê-lo na morte, no fim do mundo."
Ainda assim, nada se compara ao brilho de nossos heróis.
Pátroclo é sem dúvido o Aristos Achaion. Por seu amor, por sua gentileza, por sua coragem. Acompanhamos ele crescendo sempre a sombra de Aquiles, mas sem nunca se incomodar com isso. A única coisa que o incomodava do destino do amado é que este ira tirá-lo de si, para que fosse possível que ele entrasse na eternidade, seja como deus, seja como lenda.
"— Você irá comigo? — ele perguntou.
A dor infinita do amor e da aflição. Talvez, em outra vida, eu houvesse recusado, cortado os cabelos e chorado, obrigando-o a enfrentar sozinho sua escolha. Poré nesta, não. Ele velejaria para Troia e eu o seguiria até na morte."
Aquiles é o criminoso e a vítima. Se não o víssemos pelos olhos e amor de Pátroclo, provavelmente o odiaríamos. Ele começa como alguém confiante, mas sem arrogância e astúcia, com uma ingenuidade que o segue até seus últimos dias. Vemos como teria sido fácil para Tétis moldá-lo a seu bel prazer se não fosse por Pátroclo, sem ele, Aquiles teria se tornado o que seu filho, Pirro, foi. Cruel, arrogante, fril, irremediavelmente distante, capaz de coisas inomináveis; tudo isso por sua fama, sua reputação. E, mesmo que essa não fosse sua intenção, é Tétis que leva o filho à ruína, sussurrando a seu ouvido, deixando-o cego de orgulho.
"Lá em cima, a escuridão velava as estrelas. Eu podia sentir o peso do ar. Haveria tempestade naquela noite. A chuva ensoparia a terra até abrir-lhe fendas. Desceria das montanhas, reunindo forças para varrer o que ficasse em seu caminho: animais, casas e homens.
'Ele é uma inundação', pensei."
Mesmo se não lembrasse da história da Ilíada, eu poderia ter previsto a morte de Pátroclo quando Aquiles recusou-se a lutar. Pátroclo, que nunca deixaria seus companheiro gregos morrerem sem ajuda, que era bom e corajoso, mas não era Aquiles, então morreu pela mão de Heitor.
"— Pátroclo — geme ele. — Pátroclo. Pátroclo. — O nome é repetido até não passar de um murmúrio. Ali perto, Odisseu se ajoelha, pedindo comida e bebida. Uma cólera incontida invade Aquiles e ele quer matá-lo ali mesmo. Mas para isso precisaria se afastar de mim. Não pode. Abraça-me tão estreitamente que sinto o arquejar de seu peito, leve como o bater das asas de uma mosca. Um eco, a última fagulha de espírito ainda ligada ao meu corpo. Um tormento."
Odiei Aquiles. Por seu orgulho, sua cegueira, por ter sido tão facilmente manipulado pela mãe e não dado ouvido às súplicas de Pátroclo. E me apiedei dele, pois também sentia o peso da morte de seu amante. Sobretudo, odiei-o por não dar paz ao espírito de Pátroclo, por manter o cadáver consigo. Mas, depois de algumas páginas, não pude deixar de compreendê-lo. Tantos mitos falavam sobre os deuses se apiedando e reunindo de novo jovens casais, mortais e imortais. Como eu disse, Aquiles foi ingênuo até os últimos dias, alguém deveria tê-lo ensinado a não esperar misericórdia dos deuses.
"Aquiles chora. Embala-me e não comerá nem dirá outra palavra que não o meu nome. Vejo seu rosto como através da água, da mesma forma que os peixes veem o sol. Suas lágrimas caem e não posso enxugá-las. Este é agora o meu elemento, a meia vida de um espírito insepulto."
Nesta história, não há o famoso calcanhar de Aquiles. Destoaria, sem dúvidas, de todo o tom da narrativa. No livro, não é uma flecha no calcanhar, mas sim a morte de Pátroclo, que condena Aquiles. A flecha atirada por Páris que atingiu seu coração foi apenas um golpe de misericórdia a um homem que espera pela morte.
"— Espero que Heitor o mate.
— Acha que não espero a mesma coisa? — replica ele com voz rouca."
Os últimos capítulos do livro foram de cortar o coração. E mais uma vez admirei Briseida. Que sobreviveu dentro do acampamento grego após ter sido salva pelos dois, sempre companheira, sempre leal. Briseida que encarou Aquiles de frente, que amou Pátroclo durante uma década. Sua bondade é o que a condena também no final, ela nunca se submeteria ao filho cruel de Aquiles. Assim como Pátroclo, espero que os deuses dela tenham sido mais piedosos e tenham dado descanso ao seu espírito, já que seu corpo nunca foi sepultado. Mas não se deve esperar piedade de deuses, e eu sinto pelo destino que uma alma tão brilhante quanto a dela teve, ela não merecia isso, nenhum deles merecia — também não se deve esperar justiça dos deuses.
"—Cite um herói que tenha sido feliz. Não conseguiria.
— Não, não conseguiria.
— Sei disso. Os deuses não permitem que sejamos famosos e felizes. Vou lhe contar um segredo.
— Conte-me.
— Eu serei o primeiro. Jure.
— Por que eu devo jurar?
— Porque você é a razão. Jure.
— Eu juro."
"— Vamos deixá-lo com seu luto, príncipe Aquiles."
A escrita da autora é maravilhosa, flui com harmonia e beleza, o ritmo é perfeito. A presença de deuses, assim como a intervenção divina, é natural, parte do cenário. Nos agradecimentos ela fala que o livro foi um trabalho que durou dez anos, e eu não duvido. É um livro escrito com amor e minúncia, cada palavra em seu lugar, mas, após ler algumas páginas em inglês, devo dizer que soa melhor na língua que foi escrito, sem querer desmerecer a tradução, que também foi ótima. É fácil amar Pátroclo, vemos o livros pelos olhos dele. Uma tarefa muito mais difícil é amar Aquiles depois que ele entra na guerra, apenas o amor de Pátroclo e a habilidade de autora tornam isso possível.
"Meu derradeiro pensamento é: 'Aquiles'."
Eu tento manter em mente que eles tiveram muitos anos juntos antes da morte, anos em que foram felizes e viveram plenamente seu amor, sem medo do que o destino poderia lhes reservar. Mas isso não chega a me consolar. Ainda vai demorar um tempinho para que eu consiga pensar que o último pensamento de Pátroclo foi Aquiles sem sentir vontade de chorar. Fiquei surpresa com o desenvolvimento da Tétis, a vemos sempre tão feroz e inexorável que é difícil imaginá-la também como uma mãe, alguém que sofreu também pela morte do filho, que queria transformá-lo em deus para que fosse imortal. Aquiles era seu único filho. Fiquei feliz com ela no final, imensamente feliz. Não me lembrarei de Tétis por sua insensibilidade com os mortais, mas por seu gesto de bondade. É a piedade de uma mãe, não de uma deusa, que salva Pátroclo de uma eternidade vazia. Não posso deixar de me perguntar quanto tempo Aquiles esperou por Pátroclo no submundo.
"—Vá — diz Tétis. — Ele o espera.
Duas sombras se aproximam em meio à treva densa e eterna. Suas mãos se encontram e a luz jorra num dilúvio como se fossem centenas de urnas entornadas do céu."
É um livro belo e apaixonante. É A Canção de Aquiles, cantada por Pátroclo pela eternidade.