anicca 15/07/2021
O excesso de elevação do desempenho leva ao infarto da alma
Neste livro, Byung-Chul Han, filósofo coreano radicado na Alemanha, argumenta que o século XXI passou por um rompimento de paradigma e que, se antes vivíamos a sociedade do controle, atualmente vivemos "a sociedade do cansaço". Diferencia-se da configuração social anterior, porque enquanto aquela é demarcada por rigidez de valores e horários, controle exercido pela pressão social e imposição explícita de regras, esta camufla seus sórdidos objetivos sob um verniz de prosperidade: o sujeito moderno nada mais é que um hamster na rodinha, perseguindo o inalcançável infinitamente.
A hiperprodutividade, uma das características principais da sociedade do desempenho, se veste com uma máscara de liberdade e convida o sujeito moderno a assumir-se senhor de si, a se desvincular de vínculos empregatícios formais e a conduzir seus horários e projetos por conta própria. Contudo, na verdade, o indivíduo age sob a influência escamoteada da exigência contínua, mantendo-se constantemente em atividade sob o pretexto de "ser útil". Assim, acaba cedendo à exigente demanda por produção e se convertendo em um escravo, mas como as cobranças agora partem de si mesmo, já que acredita estar sendo guiado pelos próprios interesses, torna-se o próprio algoz. É vítima e agressor ao mesmo tempo.
A palavra-chave que define a sociedade do cansaço é: positividade. Corrompe a mentalidade do indivíduo e o aliena quanto às suas necessidades ao convencê-lo, por meio de apelos midiáticos ou de pares já mimetizados pelo modelo, de que precisa daquele aparelho eletrônico para ser feliz, ou de outro ser humano para ficar completo, ou de iniciar/cumprir mais uma meta e mais um projeto para se satisfazer. Oferecer tantos estímulos quanto for possível, mantendo-o ativo e alerta, é uma forma sutil de violência, pois satura e exaure, mas ele sussurra para si que faz parte do processo natural da evolução humana e tecnológica e segue em frente. E o ciclo se retroalimenta: o ambiente disfuncional promove carências infundadas, desmantela o vigor das pessoas envolvidas e, ao mesmo tempo, sugere que é algo típico e natural.
Com isso, as nuances entre trabalho e diversão se diluem a ponto de o segundo momento perder o sentido e ser subjugado em prol do primeiro, afinal, se você não gerar lucro como deveria, poderá ser instantaneamente substituído. E por que não estudar em vez de ver o filme? Como encaixar aquele curso de aperfeiçoamento na rotina? Então, uma onda de pessoas é induzida a perseguir metas cada vez maiores sem que o devido acompanhamento psicológico seja fornecido, daí surge o esgotamento, as síndromes nervosas e a insistente noção de fracasso por não entregue "tanto quanto poderia". E é esse o maior êxito da sociedade do desempenho: adestrar o indivíduo para querer consumir e produzir sempre mais, mesmo quando seu organismo dá sinais de falência.
Para Han, TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), depressão e a síndrome de burnout são consequências diretas dessa configuração social e econômica, pois que ela impõe um estilo de vida descaracterizado aos indivíduos, e estes, ameaçados pelo fantasma do desemprego, têm sentido necessidade de desenvolver "habilidades paralelas", de se preparar para suprir eventuais necessidades mesmo sem haver recompensa financeira. Além disso, devido à absorção do tempo que poderia destinar ao autocuidado pelo mercado, as pessoas tendem a se sentir deslocadas e incompreendidas e, por conseguinte, a se isolar, a ter menos resiliência e a se cansar mais rápido do contato humano, gerando assim um ciclo vicioso.
E como se as chagas psíquicas e a fratura das relações humanas não bastassem, a sociedade do cansaço compromete a atenção plena, profunda. Submete o sujeito do desempenho a adotar o formato disperso e fragmentado, denominado multitasking. Com ele, depositamos atenção em várias tarefas ao mesmo tempo, o que, em tese, acelera nossos processos mentais e práticos e mantém nosso tempo rentável. Mas, a longo prazo, mina nossa capacidade de resiliência, de determinação e de perseverança, nos tornando sensíveis em excesso (ou até inaptos) ao tédio, a concentrar o foco somente em um objetivo, a destinar atenção prolongada a algo, entre outros. Byung-Chul o compara ao comportamento animal, que se divide entre buscar alimento, manter-se vivo e proteger a prole, isto é, não passa de um mecanismo de sobrevivência, e seres humanos são dotados de criatividade, pensamento elevado e cultura complexa para se resumirem a subsistir.
Para superar a sociedade do cansaço, ele sugere a assunção de uma vida contemplativa, que é caracterizada pela autonomia do sujeito em relação ao meio em que vive, isto é, administrar os próprios planos e metas com base em suas necessidades pessoais, não em relação ao que o externo impõe. Consiste em deixar de realizar diversas tarefas ao mesmo tempo sob a pressão extenuante da produtividade, em desenvolver a capacidade de contemplar seu entorno, em dialogar com o tédio e dele extrair epifanias, em reeducar sua forma de perceber e de lidar com o mundo e em assumir sua individualidade autêntica, intransferível.
Dito isso, enquanto o lia, muito pensei em um poema compartilhado por Guilherme Terreri em seu canal no YouTube, o Tempero Drag. Reproduzirei-o a seguir:
mundo insano (1991)
teu saber são farrapos cobrindo a humilhação
de uma vida à tua frente sem nenhuma condição
ainda andas e falas, espantalho tão real
és a imagem perfeita da situação atual
foste outrora um elo da corrente que partiu
para trás ficou um todo e à frente um grande vazio
foi tentando aparar as arestas do teu meio
que vieste a descobrir que o certo é o mais feio
partiste sem rumo e sem fé, te tornaste um desumano
para poder suportar e partilhar um mundo insano
Ainda no YouTube, há um documentário em que o próprio autor retrabalha os conceitos abordados no livro: https://youtu.be/VbPvH515KoY.
E, por fim, sua leitura envolve camadas elaboradas por outros pensadores, nos quais o autor pauta sua análise acerca da sociedade ocidental contemporânea. Os principais são:
> Vigiar e punir, de Michel Foucault
> A condição humana, de Hannah Arendt
> Ensaio sobre o cansaço, de Peter Handke
> Bartleby, o escrivão, de Herman Melville
> Homo sacer, de Giorgio Agamben
> Humano, demasiado humano, de Friedrich Nietzsche
> O eu e o id, de Sigmund Freud