clairee 03/05/2024
Dor e Amor Intrínsecos
“Vânia voltou para o Brasil mais seis vezes. Em nenhuma delas viu Ricardo. Até o dia no fim de 2017 em que liguei para ela do meu telefone e, pela câmera do celular, eles se falaram. ‘É claro que eu me lembro de você. Você é o amor da minha vida’, disse Ricardo, que morreria duas semanas depois.”
Figura caricata, uma personagem que é a cara de São Paulo, aberração, era assim que Ricardo Correa da Silva, o Fofão da Rua Augusta- área nobre de São Paulo, em referência ao personagem fictício dos extintos programa de televisão infantis brasileiros Balão Mágico e TV Fofão, era conhecido. Com efeito, desde sua juventude em que na busca da beleza inatingível Ricardo recorreu a aplicações de silicone industrial, substância esta, que se injetado no organismo pode gerar diversas complicações, seja no momento da aplicação ou com 0 passar dos anos, gerando a ele deformações e dores, principalmente em seu rosto. Em virtude dessa deformação facial Ricardo passou por um doloroso processo de desumanização.
No ano de 2017 foi publicada no site BuzzFeed, uma notícia intitulada "Fofão da Augusta? Quem me chama assim não me conhece" pelo jornalista Chico Felitti, que em menos de 12 horas lançada já teria quase 1 milhão de acessos. Felitti que na época pretendia largar as histórias de cunho jornalístico para focar em ficção, se deparou com a história desta icónica figura das ruas de são paulo e se fascinou pela narrativa, durante quatro meses acompanhou Ricardo, na busca de saber mais sobre aquele homem tão misterioso e sobretudo marcante. O jornalista então descobre uma história emocionante, sensível e cruel, nascendo deste processo de investigação por trás da lenda do fofão da augusta, uma pessoa, uma história. Ricardo foi cabeleireiro, drag queen, vanguardista, um ícone de sua época, culto e finíssimo.
Chico Felitti então, seguiu mergulhando nessa intensa trama da vida real e enfim contatou Vânia, o amor da vida de Ricardo, residente em Paris, que por 10 anos manteve um relacionamento com ele.
Ela, Vânia Munhoz, mulher trans, mas que também já foi Vênus e Venúsia, uma quase parisiense, que se orgulha de todos os seus nomes e toda sua trajetória para ser quem é atualmente, inclusive de sua profissão de garota de programa. Vânia é a matriarca de uma família não convencional, de mulheres cisgênero, transexuais e travestis, a maioria delas se conheceu ali mesmo, em Paris, e não teve convivência no Brasil. Há meninas do Chuí a Castanhal, cidade no norte do Pará. A história de Vânia é a história de muita gente, brasileiras que deixam sua terra, em muitos casos pela primeira vez, e saltam no escuro que é o mercado do sexo na europa, ainda mais para Vânia que participou também das sessões de preenchimento caseiro com Ricardo, e leva consigo as deformidades das complicações do silicone.
Em suma, é um livro sensível e primoroso, que aborda pessoas inusitadas mas que são mais comuns do que se imagina, é uma história sobretudo, de coragem de ser realmente quem se é, mesmo que isso implique a mais variada gama de infortúnios, com a vantagem de chegar no fim do dia (ou da vida, assim como Ricardo) e ter a certeza de que valeu a pena abraçar a própria verdade, nos faz refletir também acerca da efemeridade de todas as coisas e como a sociedade pode ser cruel, ainda mais com minorias tão silenciadas. Tanto a história de Vânia, quanto a de Ricardo são lindas e tristes, cheias de desafios, mas também envolvem muita luta e superação.