Laura Brand 04/05/2020
Nostalgia Cinza
Narrativas envolvendo espiões sempre foram algumas das favoritas entre os amantes de ficção. Entretanto, os grandes enredos sobre espionagem sempre tiveram como foco protagonistas masculinos. Como seria se soubéssemos a verdade por trás de algumas das maiores e mais secretas missões e descobríssemos que os nomes por trás de seu sucesso foram, na verdade, femininos?
Inspirado em uma missão real da CIA durante a Guerra Fria, Os segredos que guardamos mostra, de maneira romanceada, como a Agência de Inteligência americana apostou em Doutor Jivago, uma das obras-primas do século XX, para mostrar aos soviéticos o poder de mudança da literatura. Confira a resenha de Os segredos que guardamos!
Doutor Jivago é considerado por muitos como o maior e mais importante romance da Rússia pós-revolucionária, rendendo a Boris Pasternak um Nobel de Literatura. O livro traz à luz o drama e a imensidão da Revolução Russa pela história do médico e poeta Iúri Andréievitch Jivago em seu constante esforço de se colocar em consonância com a Revolução. Por seus olhos hesitantes o leitor testemunha a eclosão e as consequências deste que foi um dos eventos mais decisivos do século. Em tempos em que a simples aspiração a uma vida normal é desprovida de qualquer esperança, o amor de Jivago por Lara e sua crença no indivíduo ganham contornos de um ato de resistência.
Seguindo a tradição do romance épico russo, Pasternak evoca um período historicamente crucial e retraça um panorama completo da sociedade da época, o que, claro, não agradou a todos. Doutor Jivago foi publicado originalmente em 1957, fora da União Soviética, onde só foi publicado oficialmente em 1987, 27 anos após a morte de Boris Pasternak. Os segredos que guardamos recria a sociedade russa e americana durante a Guerra Fria, tendo como elemento central o livro Doutor Jivago e uma missão real da CIA.
A Guerra Fria foi um período histórico que praticamente dividiu o mundo em dois grandes blocos ideológicos após a Segunda Guerra Mundial: aqueles a favor dos Estados Unidos e aqueles a favor da União Soviética. Ambos disputariam a hegemonia política, econômica e militar no mundo até a extinção da URSS em 1991. E não são raras as histórias de célebres espiões e missões secretas das Agências de Inteligência de ambos os países. O que pouco se fala é como a literatura também teve um papel fundamental nessa batalha ideológica.
O livro aborda o protagonismo de mulheres dos dois lados da cortina de ferro e como elas foram responsáveis por virar o jogo para ambos os lados. Os segredos que guardamos mostra como as datilógrafas eram importantes, como uma mulher podia, ao mesmo tempo, ser um trunfo e um fardo para as missões secretas e como uma história de amor pode ser a chave para uma revolução, tanto dentro quanto fora das páginas de um livro.
Além do próprio romance vivido pelos protagonistas de Doutor Jivago, as protagonistas de Os segredos que guardamos também se veem em suas próprias histórias de amor, mais reais e emocionantes do que eu esperava, o que foi uma surpresa extremamente positiva tanto para a leitura quanto para o envolvimento emocional do enredo. Além disso, Lara Prescott decide abordar questões que dão uma profundidade maior ao livro.
Mesmo que o foco seja recriar quase que uma biografia de Pasternak e seu livro, ao mesmo tempo em que usa de personagens fictícios como condutores da narrativa, Doutor Jivago ajuda bastante a dar uma ideia do contexto histórico, político e ideológico da época. É um bom recorte de um momento que rende tantas criações literárias, e Os segredos que guardamos consegue se destacar nesse sentido.
Um ponto interessante abordado pela autora é o súbito esquecimento do papel fundamental das mulheres durante a Segunda Guerra Mundial. Para cobrir a lacuna deixada pelos homens que foram servir o país, as mulheres se tornaram importantes braços na mão-de-obra dos Estados Unidos, ganhando espaço e descobrindo potencialidades.
Entretanto, ao final da guerra, muitas foram renegadas às condições de origem ou designadas a trabalhos pouco expressivos. Pensando nisso, é interessante observar a escolha da autora de abordar as datilógrafas e o papel de espiãs que algumas delas passaram a desempenhar, ainda mais em missões tão significativas como a envolvendo Doutor Jivago.
É interessante como ficção e realidade se misturam nessa obra. O que, a princípio, parecia apenas uma ficção inspirada em uma missão real, se mostra um enredo complexo, com personagens reais e muito embasamento histórico. Não à toa, ao final do livro, a própria autora agradece as diversas fontes que contribuíram para que o livro, mesmo que ficcional, tivesse a maior verossimilhança possível.
Entretanto, confesso que, por mais interessante que seja toda a narrativa e a ideia por trás do livro, só me senti verdadeiramente envolvida a partir da metade do livro. Isso porque, a princípio, somos apresentados a várias narrações diferentes e, como são usados codnomes, é difícil se localizar com tão pouco tempo de leitura. Torna-se confuso saber quem está falando, quem está vivendo cada momento e quem está apenas narrando de forma quase que onisciente. Os capítulos são bem curtos e existem várias descrições interessantíssimas, o que ajuda a fazer fluir a leitura, mesmo que ainda não haja muito envolvimento do leitor.
Gosto bastante quando autores exploram diferentes formas de narrar uma história, principalmente envolvendo enredos ricos e personagens complexos. Entretanto, é preciso atentar-se para não deixar o leitor mais confuso do que entretido, e tomar cuidado para que o enredo não perca a profundidade em prol de uma quantidade desnecessária de pontos de vista, como aconteceu em determinados momentos do livro.
Os segredos que guardamos é uma boa representação de como os livros desempenham um papel fundamental na construção do pensamento, na criação de um sentimento de pertencimento e como a literatura pode se tornar, inclusive, uma arma de guerra. É um livro que consegue ser extremamente atual, mesmo abordando um contexto no século passado. Lara Prescott leva o leitor por um capítulo da história pouco contado e ainda deixa um trabalho prontíssimo para dar adaptado para as telas.
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