Tuca 15/09/2020Recentemente adaptado como série pela HBO, “Território Lovecraft” é não apenas o título do livro como do primeiro conto apresentado nele. Composto por várias histórias protagonizadas cada qual por pessoas negras, porém que são interligadas e que seguem uma lógica temporal, todos os protagonistas são amigos ou familiares e aquele que se destaca em um conto, torna-se coadjuvante em outro, todas as narrativas, porém estão relacionadas às misteriosas, amedrontadoras, mágicas, e brancas famílias Braithwaite e Winthrop. A trama desenrola-se nos anos cinquenta, época da segregação racial nos Estados Unidos, e como todos os personagens principais são negros, essa é uma característica que ao longo da narrativa vai se mostrar um desafio muito maior que os monstros, fantasmas e bruxarias que os atormentam.
Por mais que o título tenha a ver com o escritor H. P Lovecraft não espere ver sua mitologia de forma tão explícita e maciça, é mais o estilo de história. Lovecraft costumava escrever contos que envolviam cultos mágicos, sociedades secretas, outros mundos, e é possível encontrar isso no livro de Matt Duff, no entanto, essa era apenas uma parte do universo de Lovecraft, havia muito mais dele. Duff, na verdade, baseou-se no gênero, no formato, e colocou uma pitada das premissas das histórias do colega nessa sua narrativa, com um porém: enquanto Lovecraft escrevia contos abertamente racistas, Duff criou heróis negros enfrentando não apenas magia, mas principalmente a crueldade e preconceito humanos. Além disso, há referências a outras obras clássicas do gênero Terror como “O médico e o monstro” de Stevenson.
O primeiro conto, Território Lovecraft, é também o mais longo e para mim o mais sem graça. Tanto que me desempolguei de início, porém quando parti para o seguinte em que o protagonismo muda de Atticus para Letitia, a história já se torna bem mais interessante, inclusive até com alguns toques de humor. Meu problema maior com a primeira história foi que achei a resolução do conflito sobrenatural conveniente e simples, nela o que mais me atraiu foram os aspectos humanos, as dificuldades de George, Atticus e Letitia de fazerem uma mera viagem de carro por que a cor de suas peles os tornava alvos constantes, era como se estivessem no meio de uma guerra, em território inimigo e desarmados, sendo continuadamente atacados.
Como a temática do racismo estrutural e luta contra ele para mim foi o mais interessante nos enredos, o melhor conto acabou sendo “Jekyll em Hyde Park”. Protagonizado por Ruby, irmã de Letitia, é uma trama que mescla bem o sobrenatural e os dois pesos, duas medidas em que brancos e negros eram tratados principalmente em meio às leis Jim Crow (segregacionistas). Não é uma narrativa sobre rebelião, mas sobre privilégios e oportunidades, e em determinados momentos, é chocante ler algumas situações que ainda vemos nos jornais.
Não posso deixar de mencionar que essa NÃO é um livro #ownvoice, ou seja, no caso, Matt Duff é um autor branco escrevendo sobre protagonistas negros e discutindo racismo, algo que ele nunca viveu na pele. Mesmo assim, acredito que ele conseguiu fazer o que todo bom escritor que tem intenção de escrever sobre algo pelo qual não passou deveria fazer: pesquisa. E ter empatia. Ademais, a ideia dele ao criar Território Lovecraft foi inserir representatividade negra dentro da ficção científica, o que foi uma reclamação emitida por seus amigos pretos que não conseguiam se enxergar nesse gênero que tanto apreciavam.
Acho que esse foi um livro que conseguiu muito bem ilustrar a frase dita pelo autor na capa de uma das edições americanas “Existe sempre um monstro quando se é negro na América”. Para Atticus, Letitia, George, Ruby, e todos os personagens negros da história, o racismo que sofriam era tão aterrorizante quanto os elementos sobrenaturais, não é à toa que Letitia conseguia lidar tão facilmente com eles. Na verdade, Letitia conseguia lidar bem com qualquer desafio que aparecia em sua frente. Infelizmente, o racismo é um monstro real, não tem como abrir um portal e aprisioná-lo em outro mundo, ou usar uma poção mágica para extingui-lo. É um vilão que precisa ser destruído com uma das nossas maiores armas: a nossa humanidade.
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