Kaline Bogard 17/01/2021
Um inimigo invencível
Está aí um vilão que a gente sabe que não será derrotado nesse livro. Talvez nem em uma saga de dez livros...
Pensei em várias formas de começar a resenha, mas é complicado. Como eu me senti lendo esse livro, foi percebendo que os personagens enfrentam grandes desafios sobrenaturais e um único desafio na realidade: o racismo. O autor joga com as situações de um jeito muito bacana: enfrentar uma confraria do mal? Tranquilo. Uma casa assombrada? Sem problemas. Viagens para outro planeta? Só mais uma terça-feira. Os personagens superaram todas essas dificuldades e sempre voltam para um ponto que não podem vencer: o racismo, que não tem nada de sobrenatural, nada de enigmático, nada vindo do além. É algo que está no olhar do vizinho, nos gestos de uma garçonete, na voz do motorista da outra pista.
Os personagens estão em constante estado de alerta, não (só) pelos assuntos sobrenaturais, mas esperando um tipo de golpe pior, um golpe que vem com certeza. Eles só não sabem quando, onde, como, em que intensidade. E todos têm que estar prontos para enfrentar ou não enfrentar, mas apenas engolir a frustração e a raiva a seco e seguir em frente, porque revidar é correr risco de perder a própria vida.
Isso é algo que eu admiro no Stephen King, meu autor favorito, a capacidade de desenvolver monstros em paralelo no decorrer da história. Temos protagonistas que lutam contra a criatura que personifica todos os medos e voltam para casa, para o lado daquela mãe tóxica ou daquele pai abusivo. Nesse caso, alguém que eles não podem vencer, sequer enfrentar.
Território Lovecraft é assim, é um personagem cheio de potencial, um personagem com bom humor, personagens que só querem viver e ter acesso a oportunidades e que, de repente, ficam cara a cara com a luz da criação, sobrevivem; mas quando precisam de um remédio urgente não podem comprar porque a farmácia mais perto não atende negros.
Assisti ao seriado no ano passado e por causa dele coloquei o livro na meta desse ano. A série por si só tem uma qualidade inquestionável, um elenco excelente. Mas o livro é muito superior, porque traz um leque maior de personagens carismáticos. A série expande os questionamentos para outras pautas como machismo e homofobia, que são importantes, claro, mas o livro finca suas bases no racismo e trata esse tema com uma realidade crua e dura até o final.
Gostei muito mesmo desse livro, da forma como foi desenvolvido, de todos os vilões aqui apresentados e o pior de todos eles, que ainda não foi vencido. A gente olha ao mundo ao redor, vê o racismo estrutural e percebe como as coisas mudaram. Houve um tempo em que um negro não podia comprar uma bala na mercearia dos brancos. Me imagino entrando no Chiquinho Sorvetes, pedindo uma casquinha de chocolate e a funcionaria dizendo: cai fora, não atendemos crioulos. Rapaz...
Então percebe-se que muita coisa melhorou. Enquanto muita coisa precisa melhorar urgentemente. A conclusão disso? Lendo Território Lovecraft, e outras obras com pautas similares, a gente sente que o mundo mudou, mas tão devagar, tão devagar, que parece que a sociedade mudou mas mal saiu do lugar.