Barbs 04/09/2023
Light of my life, fire of my loins
Embora seja de conhecimento geral que Lolita é um livro narrado por um pedófilo que crê na sua história de amor com uma menina de, inicialmente, doze anos, a narrativa do livro de imediato causa repulsa e antipatia do leitor para com o seu narrador, o Humbert Humbert. Para mim, é um livro de terror - as descrições de H. H. acerca das crianças ninfetas, sua espreita a espera de uma oportunidade para se lançar sobre "sua" Lolita, a Dolores Haze, os planos perturbadores que expõe no livro para tomar posse da menina, sua cabeça obssessiva e paranóica, a movimentação física de seu corpo em direção a Lolita; tudo isso constrói uma asmosfera de terror psicológico para o leitor que tem plena consciência de que o objeto amado pelo H. H. é uma criança, seja verdade ou não as aproximações que ela tem em relação ao narrador e suas atitudes "sedutoras" e preferência por homens mais velhos. Acredito que seja justamente pela narrativa - confesso, um tanto enfadonha - excessivamente descritiva que essa atmosfera de terror psicológico e a construção de um narrador pérfido seja tão... real. Real a ponto de me fazer perguntar como Nabokov soube exatamente como descrever as cenas de contato íntimo entre os dois e um personagem tão canalha. Acredito que o objetivo último de todo bom escritor é perturbar, é bagunçar a ordem natural do que está dado, tirar o véu alienante com que cubrimos a nossa realidade e apresentar o que há de mais vil acontecendo na alma de algumas criaturas.
Acerca da versão de Lolita, nada temos, apenas um relato extremamente duvidoso a respeito de suas ações no livro. É apontada como uma menina malvada, que seduz e que manipula, que oscila entre a teimosia de uma criança - com as suas birras - e a capacidade sedutora que apenas uma adulta poderia ter - mas que o narrador julga ser característica das crianças ninfetas, uma colocação muito sutil de Nabokov, que ao definir, na voz de Humbert, as ninfetas como seres crueis e diabólicos presos nos corpos de crianças de oito a quatorze anos, confere certa desumanização de Lolita, o que é perfeito para a construção narrativa da história, uma vez que ao final do livro o próprio Humbert reconhece que deixou de lado as emoções da pequena Dolores no tempo em que estava com ela. Lolita, antes uma ninfeta melindrosa do que uma criança refém-orfã, diariamente estuprada e manipulada por Humbert (pela ameaça de ir para um orfanato, também por dinheiro), torna-se uma incógnita no livro, pois aqui não tratamos de Dolores Haze, tratamos precisamente de Lolita, identidade que Humbert conferiu à criança - ninfeta.
Já no início do livro é entendido pelo leitor que Humbert está em julgamento, e é imediato pensar que ele está sendo julgado pelo que fez à Dolores, mas mais adiante revela que é por assassinato. Nós, leitores, somos seus juízes. E confessa tudo que fez à criança: admite que a violentava, que a manipulava, que a criança se manifestava muitas vezes contra o desejo do narrador, que deu remédio para que ela dormisse e pudesse a estuprar; seu objetivo não é, como eu julgava antes de ler o livro, se inocentar e transferir toda a culpa para Dolores. Seu objetivo é justificar as suas ações: Lolita não é uma criança inocente, Lolita já teve experiências sexuais antes de entrar em contato com Humbert, Lolita fez a primeira investida sexual, Lolita ameaçava entregar Humbert às autoridades e usava sexo para o manipular; em síntese, Lolita é uma criança má, tudo segundo a perspectiva do narrador, o que a isenta de um papel inteiramente de vítima. E uma vez que como o livro quer provar que, apesar de tudo, H. H. cuidou dela e de sua educação, era protetor (ciumento-obssessivo-paranoico) e carinhoso - tudo o que fez, o fez por amor, ah, por puro amor! A narrativa corresponde perfeitamente com o comportamento de um monstro/canalha/dissimulador nessa situação: tirar parte de sua responsabilidade e depositar na pequena Dolores - que se torna para ele cúmplice de seu crime -, e expor um amor aparentemente puro e genuíno por sua Lolita a ponto de fazer o leitor acreditar que esse amor é algo bonito. A narrativa é a de um manipulador, de um homem vil, de uma alma nefasta - Nabokov reconhece tudo isso e fez a sua tarefa muito bem, pois é impossível atravessar essa leitura sem se encantar com a técnica narrativa e se perturbar com o grotesco que é o seu conteúdo.
Obs- uma história com a perspectiva da Dolores seria incrível, e temos algo próximo disso com o livro Minha sombria Vanessa. Super recomendo, a autora se inspirou em Lolita para contar a versão da vítima e os desdobramentos desse trauma na vida adulta.