Luíza | ig: @odisseiadelivros 29/07/2020Leitura de quarentena #12 (já cansei de contar, acho que essa quarentena será infinita)A técnica narrativa de Lolita, ao mesmo tempo que é sua glória, é o seu abismo. Por conta dela, muitas pessoas o admiram. Por conta dela, muitas pessoas o odeiam. A ambiguidade criada pela escrita faz com que, na minha opinião, pessoas interpretem o livro de maneira equivocada: romantizam a pedofilia. Romantizar no sentido de torná-lo normal, algo a ser admirado, algo bonito.
Ao longo da leitura, comparei Humbert Humbert a Bentinho, de Dom Casmurro. Ambos são narradores não-confiáveis, ambíguos (loucos?). Devemos levar suas narrações à sério? Sim, pois a literatura representa a vida. E os Bentinhos e Humbert Humberts existem na realidade.
É um livro que não explica nem justifica a pedofilia: ele a apresenta, da forma que ela é, da forma com que o pedófilo pensa. Claro que ele dá suas motivações, justifica suas atitudes, para que o leitor seja colocado em xeque. Você acredita nele? Você concorda com suas atitudes? Somos colocados em um impasse moral.
O livro é todo Lolita. Lolita é uma personagem muito ambígua pelos olhos do narrador. Ora anjo, ora demônio. A obsessão de Humbert faz com que ele preencha cada página (pois é ele quem relata, quem narra) a respeito dessa “ninfeta”, termo que ele designa meninas púberes, até determinada idade, que o atraem sexualmente. A culpa, claro, não é só dele. As meninas se insinuam para ele! Elas são sexualizadas por seus olhos, mas elas já possuem uma sensualidade inerente e consciência (veja bem!) do que estão fazendo.
Certo?
É assim que o protagonista pensa. E foi isso que me fez empacar constantemente nesse livro. A moral (e ainda bem que ela existe) nos faz estranhar essa história. As primeiras 100 páginas, pelo menos, são as mais difíceis de tragar, no sentido de que vemos as justificativas que ele formula para defender suas ações. Não para um júri, aparentemente, mesmo que ele fale de forma recorrente a um, durante a narrativa. Mas para ele mesmo. Ele não se arrepende, mas quer “salvar” sua “alma”. [seja lá o que isso significa na mente dele]
A escrita de Nabokov ofusca muito as cenas que seriam consideradas pornográficas se não houvesse um cuidado estético (o que, pra mim, que não estudo muito a respeito disso, está longe de ser considerado erotismo também). Em “Sobre um livro intitulado Lolita”, ele fala que sua intenção NÃO FOI escrever um livro pornográfico. Tampouco moral. Tampouco didático. Tampouco romantizado. Ele é um provocador, na verdade.
Veja bem, Nabokov conhece bem a teoria e crítica literárias. Ao escrever um livro como esse (magistral), ele está nos provocando quando aquela típica pergunta surge “O que o autor quis dizer?”. Ora, o autor não quis dizer nada! Quem está dizendo, é o Humbert Humbert! E ele cuidou, esteticamente, para que o texto não fosse atribuído a ele: o prefácio fictício, as descrições de rotas, os pseudônimos. Esse livro não é mais do Nabokov. Nem do Humbert Humbert. A bomba é deixada para o leitor (ou os leitores, para se digladiarem até a morte defendendo uma interpretação específica).
Porém, aí nós, como leitores, somos colocados em xeque. Estando o autor morto (no sentido literal e figurativo), a quem atribuímos as intenções do livro? E eu respondo com outra pergunta: QUAIS questões? Tudo o que devemos interpretar, está no livro [seria um ótimo exemplo pra levar pra uma aula de teoria literária na faculdade] & [Nabokov, te odeio]. Se uma pessoa diz veemente que é uma romantização da pedofilia, que ela prove no texto. Se eu digo que não é (e eu digo isso, novamente, pra ficar ainda mais claro), eu posso dizer, não só pela afirmação do Nabokov dizendo que NÃO É um romance pornográfico, mas sustentando que a linguagem do livro cumpre seu papel ao mascarar as ações de Humbert (não há cenas descritivas daquela forma chula que seria se fosse pornográfico) em uma técnica narrativa floreada, característica do pedante protagonista. Se fosse romantização, tudo seria explícito.
Há, também, consciência do narrador de que ele, ao construir uma relação (mais sexual do que amorosa) com Lolita, corrompeu mais do que sua inocência, sua pureza. Ele a corrompeu de uma forma geral. Dá para perceber, claramente, as consequências que a ação traz para a vida de Dolores, antes mesmo que Humbert tenha consciência disso. Trago aqui outra comprovação de que esse livro não normaliza a pedofilia: vemos as consequências dos atos do pedófilo.
E nem vou dizer que ele também é corrompido, porque ele já é corrompido desde o começo. A obsessão dele é extremamente nojenta e abusiva, beirando a sociopatia. Além de que ele não a vê como indivíduo, e sim como objeto (sexual). Em momento algum consegui perceber a exaltação desse ato não só pecaminoso, mas imoral e ilegal. Pelo contrário, a cada página o sentimento de repulsa me deixava desnorteada, a ponto de eu não tocar no livro por dias a fio.
E detalhe: ele não é o único pedófilo do livro. Há mais do que um tipo de pedófilo nesse mundo (real também!). Ao mesmo tempo que Humbert mostre seu lado sórdido algumas vezes, ele se descreve como “romântico”. Se esse livro fosse narrado pelo outro pedófilo que se encontra na narrativa, aí as pessoas veriam o que é pornografia infantil. [Que horror, já estou indo muito longe pra dizer que esse livro não defende a pedofilia]
Bem, sintetizando minha resenha: gostei muito do livro, mas foi, de longe, o mais difícil que já li na minha vida. Tive vontade de vomitar a cada página. Não o indicaria pra qualquer pessoa. Mas se você for o ler, eu digo: por favor, não ache que esse livro banaliza a pedofilia; e proteja as crianças.
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