spoiler visualizarRayhan Chamoun 26/09/2022
Sobre a Vingança...
O homem moderno, em sua essência, é um homem fragilizado pelas ascensões de seus antepassados, acostumados ao ardor e à labuta, abraçados a amiúde frequência da dor e, com ela, dançavam na plenitude de tentar superá–la a cada estação. O pensamento deu ao homem a necessidade de suprir seus desejos, a guerra deu ao homem a necessidade de encarar na desgraça de outrem o seu regozijar, inconstante como a vida, prazeroso como sua luxúria.
Ao homem moderno também foi dado um, dentre vários dogmas: a crença na providência, que, invés de Pangloss, precavido como era, não resistiu ao desmantelamento de suas amarguras, e que conspurcou a mente de seu aprendiz com a transmutação instintiva da necessidade de trabalhar não para si, mas para Deus.
Assim, no século XIX, a vida do homem era assaltada pela cristandade idealizadora que, como a todos que alcançava, a todos envolvia com o significado das submissões e deveres de uma alta sociedade europeia. Assim, isolados em suposto degrau metafísico, os pensadores também dramatizavam suas reflexões, acentuando o que no cotidiano era tão tênue e subjetivo. Por conseguinte, o romance dramático encontra no pensamento do século dezenove o seu auge e também a sua hecatombe, de modo que as partituras, as encenações e peças, as argumentações e, a literatura, gozavam da excentricidade e ousadia em cingir impugnações referentes ao compêndio ético e religioso.
Nessa sociedade aristocrática, homem letrado e romancista audaz surge com a centelha que todo ficcionista se depara em algum momento de sua vida: uma ideia que poderia se resumir a um homem trabalhador, prestes a alcançar a felicidade medíocre que cabe aos homens, ainda que justa e verdadeira, sendo arrastado para uma intriga que denota a corrupção dos homens bons e o sofrimento dos inocentes. Assim, em seu maior sofrimento, transforma–se com a ajuda da senhoria enclausurada com suas ideias provocantes, e ressurge do fundo de um poço de desgosto para conhecer a vontade de ser o próprio irradiador das ânsias vinditas. Esse homem é Edmond Dantès, encarnado primeiro na mente de outro gênio, Alexandre Dumas.
O romance inicia com uma aula de atmosfera, uma prosa típica das narrações oralizadas de grandes títulos da época, traduzidas de modo acessível e diagramadas para fazer com que o leitor possa, em sua mente, acompanhar essa epopeia comovente (já que somos também, enquanto ocidentais, fruto de valores cristãos) de um homem em busca de vingança. A narrativa arrasta tenazmente o protagonista enquanto igualmente suga o leitor para dentro das páginas.
As intrigas terciárias são aplicadas com a típica contextualização franca que contribui para uma intriga elaborada e que não descarta nenhuma possibilidade no campo hipotético, tornando o sofrimento ainda pior, pois o é inseguro, e as vitórias sublimes, pois são genuínas. Encontramos no mestre italiano a personificação do mentor para o herói, que encerra em si assim como encerra em Edmond as sementes éticas prestes a eclodirem em uma constante escalada narrativa, que não impedem o entretenimento de grande parte da obra, mesmo estando em um ponto fixo e sendo essencialmente a prisão cronológica.
Um amor perdido, um pai amado que cedeu à vida não sem esperanças de reencontrar seu filho, e amigos que se revelaram víboras enquanto a malícia do homem adulto alcançava através de um professor aquele rapaz. O ritmo do livro faz com que, apesar de cansativa, a leitura nunca deixe de ser intrigante, pois nós, safos observadores e autores em nossas próprias divagações, perguntamo–nos como as peças irão se encaixarem, elas se encaixam com a mais natural excelência dos clássicos contadores de história.
Sem desperdiçar uma página, os anos transcorrem e nos sentimos diferentes, assim como os personagens mudam no decorrer das partes do romance. Seu segundo ato, brilhantemente cadenciado, prepara o leitor para um clímax que envolve as mais sofisticadas maneiras de resolver um conflito tão primitivo: a vingança.
Diferentemente dessa vendeta visceral, vemos a montagem por parte do incrível personagem e do autor em estabelecer uma ópera que nos soa como a mais bela e emocionante das partituras, cada vírgula, cada oração, cada parágrafo é uma pintura que talvez possam soar contraintuitivas para muitos leitores, mas que de maneira alguma os fará deixar de se admirarem com a competência em criar tramas e subtramas, subvertendo–as para novamente invertê–las em direções ainda que idealizadas ao pensamento cristão, tampouco insuficientes em nos embasbacar com os golpes e arfares que cada capítulo nos causa.
Sua reflexão após o terceiro ato estabelecido denota também uma resignação ante ao sofrimento e a felicidade, ousadamente impregnando suas últimas páginas com o otimismo ante ao pior, e ao sentimento de gratidão ante a oportunidade dos efêmeros momentos de felicidade, resvalando no leitor a igual gratidão ser privilegiado por ler uma narrativa tão bem–escrita.
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