spoiler visualizarMica 12/12/2016
Romance de tese reformista
Ninguém me falou que o livro trataria, mesmo que brevemente, de suicídio e prostituição. Acho que são temas bastante adultos - e as vezes os livros da FUVEST são tratados como sendo "introdutórios" e "para jóvens". Assim como a Bíblia por exemplo que também tem vários trechos que são para adultos, apesar de ser um texto que é fundamental conhecer na nossa cultura.
Ninguém me falou também que a cidade do título não é Lisboa capital de Portugal, o que eu esperava sendo Eça de Queiroz português. Eu cheguei a estudar o Realismo português na faculdade, e mesmo o próprio Eça de Queiroz, um outro livro: "A ilustre casa de Ramirez" então li sobre "a cidade e as serras" pelo menos minimamente. Mas sempre implícito para mim era que a cidade seria Lisboa, é no entanto Paris.
Muito espaço no livro é dedicado a um pessimismo em parte de Schopenhauer, em parte decadentista de fin-de-siècle. Cito a página 70 da edição Martin Claret onde um convidado a uma ceia finíssima "declarou que hoje a única emoção, verdadeiramente fina, seria aniquilar a civilização. Nem a ciência nem as artes, nem o dinheiro, nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real às nossas almas saciadas. Todo o prazer que se extraíria de criar estava esgotado. Só restava, agora, o divino prazer de destruir!". Apesar de dar voz a este aristócrata niilista o livro, na verdade o coloca em cena para o refutar: Na página 161 Jacinto fala "o pessimismo é excelente para os inertes, porque atenua o desgracioso delito da inércia. Se toda a meta é um monte de dor onde a alma vai esbarrar, para que marchar para a meta, atravez dos embaraços do mundo". Essa citação é parte de um discurso mais longo pelo Jacinto, todo argumentando contra o pessimismo.
O livro é em parte então um romance de tese: vai refutar o pessimismo da civilização, da cidade, com o vitalismo da tradição e da simplicidade rural, da serra. Partilha portanto de uma crítica a modernidade que hoje se asemenlha ao fascismo, isso é que a solução aos problemas do capitalismo industrial não são modernos mas uma volta a tradição, no caso do fascismo o elemento do folclore, o passado tribal. Mas mais que isso se trata de um plano reformista, em primeiro plano está um rico esclarecido, que se declara socialista. Este rico, o Jacinto, é pouco criticado enquanto gasta exorbitantes quantias em caprichos, luxos, livros. Essa falta de crítica lembra ao Brás Cubas que similarmente não percebe a desigualdade, não mede o gasto, na presença de uma pobreza extrema: há em ambos a naturalização da diferença de classe. Em Machado de Assis é fácil argumentar que se trata de ironia, que se está escancarando a desigualdade, a injustiça, ao proceder assim. Não se pode dizer o mesmo sobre "A cidade". Parece que Eça nesse momento verdadeiramente cria no vitalismo e na caridade reformista como respostas adquadas ao problema da civilização capitalista.