Mar 05/10/2023
Sonho é a memória do mundo (que não esquece suas feridas)
Infelizmente faz muito tempo que li, não tive tempo de sentar antes para escrever sobre. Serei breve e casual.
O início de floresta é um pouco difícil de engolir. Le Guin tem tanta acidez e ressentimento sobre os tipos que critica (com razão) que sua prosa, pelo ponto de vista de Davidson torna-se uma sátira da sátira. Enjoa ler, entre uma captura boa dos valores de um homem como ele e uma caricatura ridícula e impossível de se levar a sério. O contraste é gritante frente a austeridade, assombro e luto presentes no restante do livro. Não se se isso é uma coisa boa ou não, esse contraste.
Passado o POV de Davidson entramos de fato num planeta que é floresta. A natureza e os habitantes não são a mesma coisa, mas não precisam ser. Há respeito mútuo pela existência, que é fim em si mesma. Em suma, por meio de uma relação humanos-ashteanos, Le Guin explora colonialismo, extrativismo, escravismo e outros sistemas exploratórios desumanizantes, mas seu foco aqui é a relação espiritual dessas bases capitalistas com o ser humano que impõe tais violências. Os Ashteanos compreender o tempo de cada coisa, e vivem em florestas, onde as informações precisam ser procuradas. Existir é contemplar (uma similaridade forte com o Tao e outras filosofias orientais que não é nova para Le Guin). Já os humanos compreender um tempo único, para frente, e habitam clareiras onde tudo que existe e todas as respostas precisam estar evidentes, porque ninguém quer ou tem tempo para contemplar. A opinião de Le Guin parece clara: existir não é o mesmo que produzir.
Para amarrar essas formas fundamentalmente diferentes de se viver, Le Guin utiliza da violência. Um povo ensina o outro a matar. Há bastante que poderia ser dito; matar é um aprendizado e portanto análogo a evoluir, a aceitar o progressismo. É o pecado basal da relação entre a humanidade - irmão matando irmão. Porém eu diria que aqui matar é baseado em uma hierarquia. Uma relativização da vida alheia frente à motivos próprios. É isso que a humanidade ensina aos athsheanos, uma mudança permanente na forma como veem uns aos outros. Um pensamento, não uma ação. Por isso talvez não possam voltar atrás.
Em suma, apesar do excesso de Davidson e sua personalidade caricata, por meio de uma trama de densa (em relação tamanhoxpeso) e personagens icônicos (representantes de ideias), Le Guin faz uma crítica sensível e trágica do pensamento moderno antropocêntrico, onde o homem se vê como foco apenas para colocar progresso acima de si mesmo sem nem mesmo perceber que está se matando aos poucos, urgindo quem lê a contemplar, celebrar e jamais relativizar o valor de si e daquilo que el cerca.