Bianca 06/04/2021A PARTE 3
Se essa história fosse sobre Cem, ela teria se encerrado na segunda parte.
Teríamos sido agraciados com as quase conquistas de Cem e sua ?leviana profundidade? que, na busca por conhecer mitos semelhantes à sua história, viveria a própria tragédia.
Talvez, como leitores, sentiríamos falta de saber como Mahmut escapou do poço e, principalmente, quem matou quem décadas depois no mesmo local.
Seria um final em aberto, mesmo assim um final digno de uma bela obra, quase lírica, sobre Cem.
Cem, destinado a retornar ao fundo do poço! O mesmo onde deixou para morrer um homem que considerava como seu pai!
Mas, então, veio a fatídica terceira parte.
A Mulher Ruiva não se prestou a narrar tantas páginas só para nos elucidar como Mahmut saiu do poço e quem matou quem na beira daquele lugar amaldiçoado.
Ela bagunçou toda a história, tirou-a do prumo, desestabilizou por completo.
Quem se importaria, no final de uma obra, em saber como foi a vida dela e do filho, quando líamos sobre o crescimento, busca e destino de Cem?
O ímpeto de um leitor seria ler tudo novamente, agora sob o olhar do verdadeiro narrador dessa história: Enver, filho de Cem.
O que sobra de Cem sem a profundidade de Enver? Um adolescente egoísta que largou o Mahmut no fundo do poço e fugiu!
O que sobra é um Cem de ressaca, que havia dito a Mulher Ruiva na noite anterior que estava cansado, que não havia água nenhuma, que queria ir embora?
Quem é Cem?
Ainda com vívida de quem acaba de fechar um livro, algumas passagens começam ressonar em reflexões.
A PARTE I
Nosso novo protagonista, Enver, bem como Édipo, toma o lugar de seu pai na narrativa que ele mesmo escreveu.
Estaria Enver contando em longas e detalhadas páginas como era seu ressentimento ao pai na infância (até então Turgay) que mais pensava em trabalho do que nele?
Escrevendo por um outro ângulo (já adulto), como foi viver sem recursos, largado pelo abastado Cem?
Estaria Enver nos relatando através dos olhos de seu pai, as noites que passou ouvindo as histórias de Mahmut na infância, ao lado do poço, sob o céu de uma cidade ainda pequena e não atingida pelas construtoras e crescimento populacional?
Estaria Enver descrevendo com paixão o seu primeiro amor e relação sexual, vividas na mais tenra infância, com a Mulher Ruiva, sua própria mãe, assumindo papel de Jocasta?
De quem gostamos, afinal? De Cem ou de Enver?
A PARTE II
Estaria Enver apenas conjecturando a vida que imaginava ser a de Cem, um homem bem sucedido com um relacionamento tão estável e sereno que chega a ser inverossímil?
Pois toda profundidade intelectual e emocional que ele remete ao pai, Cem, poderia ser somente a descrição dele mesmo, Enver, em sua obsessão pelas histórias de Édipo Rei e Shahnameh?
Obsessão por sua mãe, A Mulher Ruiva?
Já que Enver nada mais sabia sobre este pai, além de poucas informações coletadas através de sua mãe.
Pois quando os dois finalmente se encontram na narrativa, num embate onde Enver pôde deixar - em partes - de representar o papel do pai para falar com sua própria voz, Cem parece apenas um homem raso, sem interesse na profundidade intelectual e emocional do filho.
Um homem que parece desinteressado e quando Enver cita assuntos como religião e filosofia.
Mas nenhuma das conjecturas pode ser a oficial. Aquela que elucida ao leitor qual das versões assumidas por Enver condiz com a realidade.
Qual das versões que ele descreve de seu pai era verdade e quais eram suposições ou ele próprio tomando seu lugar?
Estaria sua mãe manipulando a história de Cem e Enver, desconstruindo um mito onde sempre um dos homens é protagonista e vencedor?
Quem, afinal, levou a arma até a beira do poço? Foi o Cem real, que mal conhecemos, ou o Enver assumindo na história o papel de seu pai?
Capitu traiu Bentinho? Eis a questão.