Iara 23/11/2023Mística TravestiEsse livro trouxe em seus contos cores tão distintas, únicas, transcendentes, e esquisitas, que nunca imaginei que pudessem existir.
A autora tem uma sensibilidade, e uma criatividade em descrever o lugar da travesti em nossa sociedade, que me deslumbra. Diria que em sua escrita, ela eternaliza uma mística travesti. Desde o sabor doce amoroso daqueles a quem nos entregamos, dos laços de amizades que cristalizamos, até o desgosto por clientes, e homens abusadores, a potência da fúria travesti.
Admito que meu conto favorito foi o que deu nome ao livro, que trouxe o recorte de travestis, latinas, imigrantes, nos anos 50. Nele eu vi afeto, pertencimento, autodescoberta e luto. Gostei muito da relação de María com seu corpo antes, e depois de Billie Holiday. E amei ver fragmentos biográficos da vida da cantora, assistir isso me passou uma vibes meio Evelyn Hugo.
Outro conto que me surpreendeu foi Casa da Compaixão, embora as coisas estivessem esquisitas, nunca imaginei que pudessem se tornar aterrorizantes e bizarras em um nível tão elevado, segundo seu desenrolar.
Um que me deu aperto no coração foi Cotita de La Encarnación, que descreveu os primórdios da colonização, o tribunal inquisitor, e a punição de morte cruel na fogueira a todos aqueles condenados pelo crime de sodomia. Levou uma tonalidade de afeto-violência. Vimos o antes, em que a protagonista foi amiga das mulheres, cuidou de suas crianças, e amou de forma carnal e além os homens com quem convivia. Esses mesmos homens, que com ela descobriram o prazer e por ela foram ensinados a foder, celebraram a sua morte bradaram sua tortura, como hipócritas.
Além disso, o conto Seis Tetas tem um começo com uma distopia impecável, genial, e tristemente verosímil. De repente na época em que vivemos, com travestis ocupando todos os lugares, em diversas profissões, acontece um golpe. Drones anônimos ordenam que matem as travestis, e todos que as tocaram três vezes. É um começo doloroso, mas que nos faz pensar o quão firme realmente é o lugar que conquistamos até então. Eu descreveria o decorrer desse conto, do meio até o final, como exótico, ativando imaginações provocadoras e repensando nosso lugar, enquanto comunidade.
O livro como um todo é ótimo, cada conto com um ângulo de observação sobre o mundo, mas todos com uma marca autêntica que só Camila Villada é capaz de deixar. Você já leu uma travesti hoje?