spoiler visualizarGabriel1994 10/03/2024
Café com Decepção
A trama de Café com Lichia segue a segue a história de Theo Mori e Gabriel Moreno, dois adolescentes da cidade de Vermont cujas famílias, rivais, tem seus negócios ameaçados por uma nova cafeteria recém inaugurada na cidade e que, numa tentativa conjunta de salvarem os cafés de suas famílias, acabam por desenvolver sentimentos um pelo outro. Isso apenas em tese. Durante minha leitura, minha impressão foi de que o verdadeiro protagonista era o Theo, enquanto Gabriel era forçado a estar naquela história por motivos que na verdade nem importavam tanto assim.
Essa review contém uma quantidade absurda de spoilers, então caso ainda não tenha lido o livro e não tenha visto o aviso, esteja ciente disso agora.
A escrita de Emery Lee não é nada de muito impressionante. Em muitos momentos não pude deixar de sentir como se as cenas fossem mal trabalhadas. Há horas em que você sente falta de uma melhor descrição das situações ou que elas poderiam apenas ter sido melhor desenvolvidas; há horas em que você sente que está perdendo tempo lendo detalhes desnecessários sobre situações e personagens que acabam nem tendo tanto impacto para a trama no fim das contas; e ainda há horas em que você apenas sente que uma plotline ou uma cena inteira poderia ter acontecido e não aconteceu (me refiro a você, cena do jantar na casa dos Moreno)! No quesito escrita e desenvolvimento da trama, deixa a desejar num geral.
Na sinopse é dito que os protagonistas se juntam pra tentar salvar os cafés de suas famílias, mas essa premissa é condizente ao personagem Theo quase que unicamente. Gabriel mal se esforçar pra tentar manter a cafeteria dos pais aberta, tendo como seu esforço máximo incrementar alguns elementos e ingredientes clássicos das receitas da família Moreno nas guloseimas dos Mori. Além disso, a aliança dos personagens principais que deveria ser a trama
principal se inicia na metade do livro e dali pra frente começa a perder espaço na história, essa que passa a focar mais no romance dos protagonistas. Ao fim do livro, o conflito proposto pelo possível fechamento das cafeterias é solucionado sem participação direta das personagens.
Gabriel é, provavelmente, o pior protagonista de um livro que eu já li até o momento. Em quase toda a obra seu desenvolvimento parece ser cortado pra não atrapalhar o desenvolvimento de sua contraparte, ocasionando no que parece ser uma falha e apressada tentativa de compensar pelo tempo perdido. Muitas linhas de plot em potencial são estabelecidas e quase nenhuma delas têm êxito. "Professora de dança vai embora"? Ótimo! Vamos mantê-la na história até o fim do livro assim mesmo! "Gabriel ama dançar"? Legal! Vamos colocar diversas cenas dele angustiado com uma série de coisas mas em nenhuma ele recorre ao seu hobbie pra desestressar, coisa que em tese ele deveria fazer como estabelecido pelo próprio livro. "Pais homófobicos"? Melhor ainda! Vamos estabelecer esse ponto e não fazer nada sobre durante toda a história, até chegar no final e fingir que isso nunca importou de verdade. "Melhor amiga obcecada com trabalho e coadjuvante apaixonada pelo protagonista"? Incrível! Que tal desperdiçar essas potenciais plotlines só mencionando isso de tempos e tempos e não fazendo nada de muito significativo sobre?
O fato de que Melissa é obcecada com a comissão de eventos da escola poderia implicar impactos maiores na trama, como por exemplo alguns professores reclamarem sobre a comissão estar chamando alunos demais pra ajudar a organizar a festa da escola em tempo de aula, ou a maior quantidade de membros da comissão que surgiram do nada e como tudo isso deveria passar por ela, a dita presidente da comissão.
Vivi é outra personagem com potencial desperdiçado. Seu único papel é existir, não tendo impacto qualquer na trama em tempo nenhum. Honestamente, teria sido muito melhor se Vivi tivesse descoberto o esquema de Theo, Justin e Gabi e, por ciúmes, os dedurasse para Melissa, assim quem sabe a personagem se tornaria minimamente interessante. O conflito de Gabi e seus pais homófobicos também desaponta. Toda a ansiedade de Gabi durante a história gira em torno do medo de seus pais descobrirem que ele é gay e, quando isso acontece, nada de significativo é feito sobre. A cena da conversa deles no carro é ligeiramente decepcionante, tendo em mente o quanto o livro antecipa esse momento ao exaltar a intolerância dos Moreno. Até mesmo a professora de dança, personagem cujo conflito para Gabi é justamente estar indo embora, permanece na trama por pelo menos 3/4 dela. Por fim, o que dizer de Gabriel Moreno? Um protagonista pouco carismático, sem atitude, sem personalidade além de ansiedade e timidez e que parece existir apenas em função de dar a Theo um par romântico, romance esse que também é pobremente desenvolvido. A passividade de Gabriel frente sua própria vida chega a ser frustrante em alguns momentos. Havia vezes em que eu não conseguia deixar de pensar "meu DEUS garoto REAGE, FAÇA ALGUMA COISA". No entanto, como um bom peixe dourado, ele continuava ali, inerte. A cada capítulo entitulado "Gabi", eu só conseguia rezar e me concentrar ao máximo para ler o capítulo o mais rápido possível para que minha tortura chegasse ao fim.
No início do livro é estabelecido que Theo e Gabriel posseum desavenças por um motivo, no mínimo, ridículo. O que faz sentido com o personagem do Theo, dado como uma pessoa teimosa e rancorosa. Gabriel, por outro lado, apenas leva isso pra frente por não entender o porquê de Mori nutrir tamanho desgosto por si, mas ele consegue ser tão afetado que tem medo de irritar o outro a qualquer custo, mesmo que este não esteja em seu círculo social ou sequer afete qualquer campo de sua vida. Até mesmo a cafeteria dos Moreno, pela qual Gabi diz tanto prezar, é deixada de lado durante boa parte da história pelo próprio Gabriel. No tocante à relação amigável-romântica dos protagonistas, a impressão que fica é de que Emery não sabia como desenvolver esse relacionamento e, portanto, não o faz. Gabriel e Theo desenvolvem sentimentos um pelo outro rapidamente e de forma que quase faz parecer que vem "do nada", uma vez que em questão de 2 a 3 capítulos Mori vai de odiar a existência do Moreno para flertar com ele abertamente. Simples e preguiçosa incontundência.
Contudo, ao meu ver, Theo mori é, sem dúvidas, a melhor coisa no livro todo. Pra falar a verdade, a 1,5 estrela dessa review só existe por conta dele. Theo Mori não é nem de longe o melhor protagonista de um livro que eu já li, mas é com certeza a melhor personagem de Café com Lichia. Seus conflitos geracionais são mais interessantes e melhor desenvolvidos que os de sua contraparte, abordando até mesmo sua relação com parentes externos ao seu núcleo familiar principal e como isso afeta a ele e seus pais. Diferentemente do outro protagonista, em momento nenhum Theo é uma figura passiva em sua própria história, sendo sempre aquele quem toma atitudes para tentar contornar as adversidades ao invés de esperar por um milagre para salvá-lo. O desenvolvimento da relação de Theo com seu irmão, embora curto, é muito bem feito, não se esticando mais do que precisa para funcionar. O relacionamento dos Mori com seu filho também é competentemente trabalhado. Não são pais perfeitos e não precisam ser, proporcionando uma conclusão extremamente satisfatória à trajetória conflituosa de Theo em busca de seu futuro ideal versus a manutenção do status quo em sua casa. Não me surpreenderia se essa tivesse sido a ideia original de Emery para a trama do livro e acredito que teria sido uma leitura bem mais agradável se assim fosse, visto que a história correria fluidamente mesmo com a ausência de Gabriel Moreno nela, sendo necessárias mudanças mínimas para funcionar. Todavia, nem todas as plotlines atreladas a Theo satisfazem. A amizade entre Theo e o coadjuvante Justin poderia ter sido melhor trabalhada, assim como o relacionamento "ioiô" deste e da personagem Clara, que acaba não passando de uma figurante na grande escala da obra.
Em suma, Café com Lichia é exatamente o que pode se esperar de um chamado "queridinho do tiktok": uma narrativa medíocre com personagens pouco interessantes, desperdício de um excelente potencial e sustentada em hype pelo simples fato de ser uma história queer escrita por ume autore queer. Não é uma leitura que eu revisitaria, mas é apenas minha opinião e sinta-se à vontade para ler o livro por conta própria e discordar de meu posicionamento, embora eu duvide que qualquer leitor competente o faça.