Bruna 24/09/2020
?Sobre a nudez forte da verdade,o manto diáfano da fantasia?
?O que se passava no mundo dos adultos, na cabeça de pessoas extremamente racionais, em seus corpos carregados de saber? O que os reduz a animais dentre os menos confiáveis, piores que os répteis? Por mais que eles quisessem se achar diferentes, para mim pareciam cada vez mais farinha do mesmo saco.? É com essas e outras reflexões do mesmo teor que Giovanna conduz sua história através do mais novo romance de formação da autora italiana Elena Ferrante. Já adentrando a turbulenta fase da adolescência, Giovanna ouve do próprio pai que está crescendo e se tornando a irmã de seu pai, sua tia Vittoria, um nome que, ?na minha casa, soava como o de um ser monstruoso que mancha e infecta os que toca? segundo a própria Giovanna conta. Só que ela nunca conheceu tia Vittoria.
A partir dessa afirmação do pai, ?o manto diáfano da fantasia? da vida de Giovanna começa aos poucos a cair e revelar a verdade cruel que está debaixo dele. Com o desenrolar do livro, Giovanna descobre quem é a tia Vittoria e estabelece um laço forte com ela: é ela que conta as verdades cruas a Giannì, como fora apelidada pela própria tia; é ela que não esconde os motivos da quebra de relações com o pai de Giovanna. Aos poucos, Giovanna percebe que a tia é o completo oposto do pai: ela tem pouca escolaridade, o pai é intelectual, a tia é mal educada, o pai é polido, a tia é emocionada, o pai contido. E é isso que causa tanto nojo no pai, o fato de Vittoria ser uma pessoa tão fora da curva para a família dele a ponto que as relações precisam ser desfeitas de modo brutal.
Giovanna conhece aí e descobre verdades que lhes eram omitidas há tempos. Verdades que doem, que são nojentas, que causam mal estar não só nela, mas no leitor também. Com o convívio ao lado da tia, conhece uma realidade a qual os pais sempre quiseram omitir de suas vistas, sai da sua bolha tanto intelectual como até regional ao se deslocar até a parte baixa de Nápoles para encontrar sua tia com frequência. Além disso, ainda passa pelos desconfortos e inseguranças da adolescência, o que me trouxe à mente a Lenù (personagem de ?A Amiga Genial?, também de Elena Ferrante), que também é retratada em um momento lidando com as novidades e brutalidades trazidas por essa fase. No caso de Giovanna, isso vem com muito mais brutalidade, justamente por vir junto com essa torrente de verdades sendo ditas e máscaras caindo em sua frente.
Mais uma vez Ferrante escreve uma narrativa incômoda, bruta e visceral. Me peguei várias vezes precisando fechar o livro pra respirar e pensar sobre a história narrada. Com um enredo cativante e ao mesmo tempo até repugnante por expor os lados mais podres e sombrios da natureza humana, a autora consegue com maestria escrever uma narrativa crua, verdadeira e original. Tão verdadeira que a recepção do livro aqui no Brasil dividiu opiniões, seria esse um livro nojento e magistral com toda a força que ele traz ou um livro frágil e fraco por abordar questões cotidianas com uma honestidade tão raramente vista? Na minha opinião, esse livro foi ?girar a faca na ferida?, como a própria Ferrante define o ato de escrever. E é por isso que Ferrante divide opiniões. Ela nos mostra nossos piores lados e a verdade que, assim como os pais de Giovanna, queremos esconder.