Valdir Vidal 01/08/2014Fogo Morto - O Apagar das Luzes. O romance regionalista Fogo Morto, do autor paraibano José Lins do Rego, destrincha o nordeste brasileiro durante os anos áureos dos engenhos de cana de açúcar. O período correspondente vai da construção do Engenho Santa Fé, pelo Capitão Tomás Cabral, ainda nos tempos do império, até a sua decadência, no apogeu dos temidos cangaceiros. Com esse intuito, o autor lança mão de três personagens: Mestre José Amaro, Coronel Lula de Holanda e Vitorino Carneiro da Cunha. Totalmente diferentes entre si, encontram-se na antipatia e na zombaria por parte do povo local. Em suas jornadas conheceram o auge do açúcar no nordeste brasileiro, viram sua decadência e para tanto pintam o quadro mais comumente mostrado daquela região no resto do país. Ainda assim, Fogo Morto passa longe da amargura vista em alguns retratos da região, a secura da terra, a fortaleza muda das mulheres e a fragilidade do homem são relatados com pinceladas poéticas e salpicadas de um bom humor saborosíssimo.
O mestre José Amaro é um famoso seleiro do Pilar, na Paraiba. Desde que nascera, vivia em uma porção de terra do Engenho Santa Fé, cedida pelo senhor de engenho Lula de Holanda. Na ocasião, seu pai fugira de uma comunidade conhecida como Goiana, após matar um homem para defender a honra da filha e recebeu as terras a pedido de um parente, que também era amigo do Coronel. A história se passa quando mestre Amaro e Seu Lula já são velhos e entram em conflito graças a uma desavença política. A casa do mestre serviu de cenário para a primeira parte do romance, uma vez que por ela passaram todos as personagens importantes da história, incluindo os três anti heróis da trama: Zé Amaro, Seu Lula e Vitorino Papa Rabo. O mestre, conhecido por todos como temperamental, orgulhava-se de suas poucas riquezas: sua família e sua vida de homem simples, sem floreios e luxos desnecessários. Apesar disso, vivia as turras com a esposa, Dona Sinhá, e era vítima do ódio de sua filha Marta, uma solteirona de trinta anos de idade. Para fugir das frustrações, costumava caminhar durante a noite, quando, aparentemente, podia estravasá-las sem ser incomodado. Essas incursões noturnas e as crenças peculiares da comunidade em pouco tempo lhe trariam a alcunha de lobisomem.
O Coronel Lula de Holanda herdou o Engenho Santa Fé após a morte do seu fundador, o Capitão Tomás. Lula casara-se com Amélia, a filha mais querida do capitão, entretanto logo demonstrou sua incapacidade para tocar o engenho e seus negócios. Após assumir o Santa Fé, Lula mudou a cultura do engenho, outrora zeloso com sua escravatura, para truculento e intolerante, a ponto dele receber a fama de um dos mais violentos da região, e dessa forma arruinou o legado do velho Tomás. Essa intolerância aliada a sua religiosidade exacerbada condenaram sua família ao deboche do povo e a inúmeras dificuldades financeiras. Dona Amélia se viu obrigada a agir as escondidas para manter o engenho de pé e tomou as redeas da situação. Paralelamente a isso tentava em vão contornar a infelicidade de Dona Mariquinha, filha do casal proibida de se casar com os pobretões locais.
O Capitão Vitorino era tido como louco por muitos. Vivia de engenho em engenho montado numa égua esquálida, quase moribunda, uma referência clara ao cavaleiro da triste figura. Era casado com Dona Adriana e pai de Luís, jovem que vivia no Rio de Janeiro à estudos. Em sua loucura despertou a fúria dos senhores de engenho locais quando decidiu apoiar o desafeto político dos mesmos.
Em Fogo Morto, a terra é personagem principal e serve de mote para o estilo do escritor paraibano, sempre ácido, seco, direto e sem floreios linguísticos. Sua secura transparece em linguagem coloquial, sempre resumida em diálogos sucintos de frases curtas. Em uma caminhada de um engenho à outro, sente-se a aridez do solo nos pés, o mau cheiro da carne em decomposição dos animais entranha as narinas, o sol reinante tortura a pele.
As mulheres também são fundamentais para a trama. Mais destacadamente apresentadas estão Dona Sinhá, Dona Adriana e Dona Amélia. Todas elas serenamente resignadas diante dos temperamento e destino incerto dos maridos. Distanciadas das decisões relevantes à comunidade pela conveniência social perambulam de casa em casa, apostam na serenidade e na sensatez para mudar a sorte dos seus lares, onde ao menos tem alguma voz ativa.
O romance, tido como o auge da prosa de José Lins do Rego, traça, paralelamente, a discussão sócio, político e econômica dos engenhos de cana de açúcar, o mapa das fragilidades humanas, sejam elas vindas de ricos ou pobres. Boa parte delas surge da convivência no ambiente hostil, muitas vezes dilacerante, do sertão nordestino, no seu calor escaldante e nas constantes disputas armadas por porções de terra, e ainda, em menor medida, de falhas de caráter inerentes a condição humana, mais notadamente no desprezo pela pobreza e no ranço racista, ainda fresco na memória das pessoas. O frescor tanto para a trama quanto para a condição miserável do povo nasce das incursões heróicas do cangaceiro Antonio Silvino, famoso por roubar os ricos e dar aos pobres. Historicamente, sabemos que, assim como os senhores de engenho, o cangaço também sucumbiu a modernidade, durante a era Vargas. O nordeste ficou novamente sem seus heróis e muitos migraram para outras regiões. Agora o movimento é inverso, os chefes do tráfico de drogas do sudeste fogem para o nordeste e lá montam seus novos quartéis. O Fogo Morto ainda vive diante de nós.
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