Samyle 09/10/2019
"Para o mais, já gastei minhas curiosidades todas, desiludi-me depressa"p. 184
Eis um livro que li despretensiosamente, mas que se tornou um favorito e uma das melhores leituras desse ano. Mesmo sendo um clássico bem envolvente, é pouco comentado, possivelmente devido à fama da autora. Rachel se envolveu com o Movimento Socialista, tendo até escrito um livro com um viés mais propagandístico (João Miguel), mas que posteriormente apoiou a ditadura militar, sendo esse um possível motivo para não ser muito lida e estudada nas universidades. Não bastando isso, não obstante as suas personagens femininas dominarem a sua obra, a autora sempre afirmou não ser feminista, o que não melhorou a visão das pessoas sobre ela.
Mas, para quem ousa desbravar a sua literatura de peito aberto, encontra uma deliciosa surpresa. A escrita da autora se diferencia bastante das suas contemporâneas, que faziam a chamada "literatura feminina" (segundo a crítica) e possuíam um estilo mais adocicado, enquanto Rachel escrevia de uma forma seca até, sem sentimentalismos, o que fez as pessoas questionarem se ela era quem efetivamente escrevia seus livros.
Rachel inovou também ao se distanciar da fórmula regionalista empregada até então. Embora suas personagens estejam ambientadas no Nordeste e possuam traços particulares da região, "a romancista rompe os limites geográficos de sua ficção porque os desejos, medos e dramas humanos que representa são universais" (Osmar Pereira Oliva).
Em As Três Marias, livro considerado por muitos a obra-prima de Rachel de Queiroz, somos presenteados com um retrato muito bem escrito da situação da mulher nas primeiras décadas do século XX. A priori, conhecemos a realidade do internato, onde as meninas eram confinadas para ter uma educação ditada pela religião, mas que era burlada pelas travessuras juvenis (que ainda hoje nos diverte). Depois, acompanhamos o desenvolvimento das personagens, que de tão bem feito gera um apego só perceptível pela saudade deixada ao fim da leitura.
É uma estória coerente do começo ao fim, com a qual facilmente nos identificamos (sendo mulher, especialmente). Ao longo de todo o enredo, Maria Augusta, nossa protagonista, enfrenta o peso das expectativas sociais para se adequar ao ideal feminino da época, contornando-as ao seu modo. Mas ainda assim não perde esse aspecto de mulher real, com emoções e vivências que nos igualam. A autora, aliás, conseguiu uma proeza de difícil execução: descrever os sentimentos de sua protagonista com profundidade e verossimilhança, utilizando-se de uma prosa poética que não soa piegas, mesmo quando fala de amor.
Uma das passagens que esse talento incomum mais veio à tona, que também foi ressaltado pela Isa do @lerantesdemorrer, foi uma descrição de uma cena de sexo que conseguiu destrinchar com maestria os sentimentos e conflitos femininos, entre essa liberdade pessoal recém conquistada em contraposição com todas as crenças impostas socialmente, numa prosa concisa e de uma beleza arrebatadora. Faço minhas as palavras da Isa, foi a passagem mais linda nesse contexto que já li.
Então, faça um favor a si mesmo e conheça Rachel de Queiroz.
@chez_literatura IG literário