spoiler visualizarigoraragao_ 01/10/2023
A composição excêntrica e dualista
Paixão Segundo G.H., escrito por Clarice Lispector e publicado em 1964 pela editora Rocco, é um livro que apresenta um enredo de viés crítico-filosófico, mas, ao mesmo tempo, pode ser considerado perturbador.
A escritura inicia com a personagem G.H., uma mulher da alta sociedade, que, após demitir a empregada, chamada Janair, decide limpar o quarto dessa ex-funcionária. Nesse momento, porém, irá suceder uma cadeia de ações muito atípicas na mente da personagem, uma vez que ela se deparará com dois elementos - um desenho feito a carvão na parede e um artrópode, mais precisamente uma barata dentro do armário. O primeiro refere-se à imagem de um homem, uma mulher e um cachorro, os quais contêm apenas a silhueta, e são vazios de qualquer outro membro. Isso causa a G.H. uma profunda reflexão sobre si mesma, já que ela se vê naquela obra - uma pessoa sem identidade, desguarnecida. Já o segundo elemento, a barata, lhe causará, em primeiro plano, desgosto e, assim, esmagará o inseto. No entanto, após um bom tempo de observação, a protagonista compreenderá que o animal é a parte mais negativa e problemática de si mesma, a qual necessita se unir a outro lado do seu ser, para, dessa forma, haver um indivíduo completo internamente. Em outras palavras, o animal é comido.
Sob uma primeira análise, o livro pode ser considerado vultoso, já que tratará de três aspectos muito importantes socialmente: a disparidade de classe, raça, etnia e, por fim, a ausência de autoconhecimento humano. A denúncia da anteposição entre Janair e G.H. é muito bem trabalhada - esta uma mulher branca e burguesa; aquela, negra e humilde. Além disso, tem-se uma chaga muito recorrente, sobretudo ao público agraciado de poderio aquisitivo - o vazio interno. G.H. era uma pessoa muito erma e infeliz. Ademais, no que tange às noções literárias, o texto se faz excêntrico, contudo, muito bonançoso. A exemplo disso, tem-se a antítese entre a personagem principal e todos os demais, o título que pode-se dizer análogo à paixão de Cristo e a dialética com o leitor.
No segundo sentido, há alguns aspectos que o fazem ser negativo: a descrição que a personagem tece dos seus contrários e a fluidez narrativa. Os momentos de G.H. dentro do quarto foram sempre muito sensíveis. A título de exemplo, ao esmagar a barata, há uma descrição completa do animal e também da própria protagonista diante da situação, algo que para alguns pode ser um pouco incômodo e subversivo. Outrossim, o estilo literário psicológico clariceano pode não agradar certo público, pois o enredo da composição não segue um viés cronológico - início, meio e fim. Na verdade, enfoca muito na subjetividade da personagem.
Em suma, a obra é muito singular, literariamente, por ser muito distinta da maioria dos outros trabalhos. Ademais, socialmente traz à tona temáticas excepcionais. No entanto, pode ser considerada impactante ou, até mesmo, enfadonha a depender de quem a lerá.