spoiler visualizarFrancisco Cabral 09/11/2019
Estado de graça (paixão)
A Paixão Segundo G.H é um elogio do anonimato de viver, do desapego à existência de um Eu separado e da deseroização do ser humano. Ao se aproximar visceralmente de uma barata, a personagem G.H. tem uma revelação trágica e libertadora. Ao se sentir ameaçada pela presença de algo tão primitivo quanto uma barata ela entra em um estado de choque e repulsa. Depois, sozinha e sem expectadores ela se torna tão primitiva e autômata quanto a barata ao dissecar os elementos da repulsa e encontrar um processo tão primitivo de si mesma (que sempre existiu e foi recalcado): o estado de graça chamado paixão. Se desencadeia um processo sem volta: o abandono do que ela achava que antes era G.H.
Ao longo do processo de crescimento, o ser humano vai entrando em contato com experiências, emoções, percepções, conceitos e preconceitos, hábitos e rotinas e assim passa a se relacionar com tudo ao redor de forma superficial e dicotômica (gosto ou não gosto, quero ou não quero, é bom ou ruim, é certo ou errado, sou eu ou não sou eu, isso dói e isso não dói, etc), então o mais nobre do ser (que é a própria vida) vai sofrendo "acréscimos" desnecessários e falsos. Esses acréscimos resultam na própria auto-exclusão da paixão (graça) de existir, uma vez que as nossas características intelectivas na verdade são apenas vieses de observador, uma forma ilusória de buscar sentido auto-biográfico para a vida. Somente na desistência dessa auto-biografia é que reside justamente a autenticação e o batismo do existir. Por fim, G.H. abandona o próprio discurso e o sentido da linguagem, que era o seu último esforço de civilização: se fazer compreender, mostrar que sempre existiu uma graça de salvação aqui e agora, para depois então tornar-se tangencial e dissidente: Clarice nos abandona após o choque da revelação. Para onde vai? G.H. torna-se uma espécie de entidade totalmente exteriorizada, objetiva, e portanto divina, iluminada, pulsante: real.