Frankcimarks 22/08/2020
Imanência ou mergulho ao subterrâneo do ser
Não lamento o fato de ter lido Clarice tardiamente. Certeza que ela é um tipo de escritora que requer de nós uma certa ou pretensa maturidade ( não que eu seja a pessoa mais madura do mundo, longe disso). O fato é que se eu tivesse lido um de seus livros na adolescência, talvez ( ênfase em talvez) eu jamais tornasse a ler qualquer coisa sua.
Clarice é confusão, desorganização, desconstrução, desaprendizagem. Clarice é, sobretudo, antes de tudo, estranhamento. Meu Deus! Como é estranho ler essa mulher, mas como é belo estar em contato com suas palavras! O jeito que ela descreve algo, ou pelo menos tenta; a forma de agigantar o minúsculo, como se colocasse uma lente telescópica em nossos olhos para enxergarmos os micro-organismos sob nossa pele.
Esse livro em específico te joga do alto de uma cobertura para dentro do esgoto, minha impressão foi essa, não me julgue. A paixão de G.H é uma queda livre sem paraquedas. Você sente a angustia de estar desabando e não tem onde se agarrar. Você não sabe o que está lendo, pra começo de conversa. Você apenas presume que sabe o que está lendo, mas a grande verdade é que terminará o livro e continuará sem saber o que leu. A escrita de Clarice permanecerá com o leitor por alguns dias, atordoando-o.
o que eu achei que li:
Uma mulher rica, entediada, decide arrumar a casa e vai no quartinho da empregada, demitida, para organizar o que ela pensou estar uma bagunça, afinal era o quarto da empregada. Surpresa com o que viu, o oposto do que suspeitou, vê, surgindo dos fundos de um armário, uma barata. Aqui começa a viagem de G.H, ou melhor, sua via Crucis.
Esse quartinho de empregada insignificante é o santíssimo lugar, onde a arca da aliança repousa, sob a glória do Deus. G.H, num impulso incontrolável, ataca a barata. Como nós o fazemos com aquilo que consideramos menor e indigno, simplesmente atacamos. A barata, ser misterioso, sujo, esquisito, antigo, resistente, permanece meio viva. ( não será esse o estado de todos nós nesse mundo, meio vivos?) G.H fica intrigada com a massa branca, as vísceras da barata, e depois de refletir no universo, na vida, em si mesma e em Deus, na humanidade, nas coisas, decide comungar com aquela coisa vil e come a massa branca da barata, como se comesse uma hóstia sagrada.
PUTA QUE PARIU! Genial!
Quantas interpretações possíveis Clarice nos deixou? Não é isso que faz uma obra ser grande? Em muitos momentos me lembrei de Kafka e sua metamorfose. G.H não é Gregor Samsa, não se transmuta num inseto, mas sofre uma metamorfose ao se deparar com um.
Se nós observássemos mais as pequenas coisas ao redor, o que nos tornaríamos? Talvez encontrássemos Deus nas formigas, nas bactérias, nas baratas. Por que desprezamos tanto o que é menor, diferente? Por que não enxergamos Deus no outro? Deus está na alteridade e só quando reconhecemos isso, temos comunhão com seu íntimo.
Posso estar completamente equivocado quanto ao sentido do texto, mas o que importa? O importante foi a experiência maravilhosa que Clarice me proporcionou. Estou viciado nela.