Jaqueline 15/01/2011Lançado na Espanha em 2009, “O Tempo entre Costuras” chegou ao Brasil pela editora Planeta no segundo semestre deste ano de 2010 com muita expectativa. Alardeado pela crítica especializada como um “banquete para os sentidos”, este livro mexeu profundamente comigo. A escrita de María Dueñas é rica, elaborada e muito bem desenvolvida. Com elegância e um primor de detalhes que há tempos não via em um lançamento literário, ela nos apresenta uma protagonista multifacetada e marcante. O passar dos anos é marcado em sua personalidade como ferro sobre madeira, e suas reflexões sobre a vida e suas escolhas possuem tamanha lucidez que se torna impossível não cair de amores pela história desta obra.
Iniciamos nossa jornada na Espanha às vésperas de sua Guerra Civil. Profundo, delicioso, sensual: um novo mundo de cores, cheiros, ruas e vielas se desvenda diante de nossos olhos a cada página. Se houvesse como pontuar o livro com mais do que cinco UP’s, eu o faria.
Dividido em três partes, o livro avança pela juventude de Sira Quiroga na cidade de Madri e seu envolvimento com a costura e o mundo das linhas, pespontos e botões com uma sutileza ímpar. Criada pela mãe solteira, Dolores, Sira cresceu e tornou-se uma mulher que, segundo suas próprias palavras, “tinha como capital apenas as suas mãos”. A luta pela sobrevivência diária torna-se mais depressiva e selvagem com a aproximação da guerra civil, que eclodiu em 1936 e deixou mais de um milhão de mortos em pouco mais de três anos de conflitos. Sira, no entanto, escapa do centro dos embates: por caminhos tortuosos, ela acaba no Marrocos, dentro do chamado Protetorado Espanhol. Lutadora, ela desfila por um mundo de homens tão distintos entre si como água e vinho, e consegue permanecer de cabeça erguida após as adversidades que enfrenta.
Deixando de lado um futuro sem surpresas ao lado do noivo, Sira se entrega a paixão com o misterioso e sedutor Ramiro. Jogando tudo para o alto, ela segue seu coração e acaba completamente sozinha em Tanger, cidade cosmopolita do Marrocos. Entre hotéis de luxo e diversão desenfreada, ela se encontra abandonada e completamente endividada. É a partir daí que se inicia a transformação mais marcante de Sira - de jovem moça apaixonada e cheia de confiança até uma mulher que enfrenta seus medos com altivez e coragem. Os personagens secundários que vão aparecendo na história são incrivelmente fortes e bem trabalhados. Candelária, a primeira delas, é uma muambeira que descobre o talento da menina para a costura e cria um engenhoso plano para conseguir dinheiro e montar um ateliê para Sira. Muitíssimo importante na trama, ela foge do clichê “mulher pobre que foi endurecida pela vida”: ela é malandra, doce, escandalosa, de uma inteligência e perspicácia sem iguais. Cada personagem possui dimensões e facetas tão complexas como somente pessoas de carne e osso possuem. Rosalinda Fox é, talvez, o maior exemplo disso.
Como uma elegante e glamourosa costureira, Sira atravessa mundos, redes de poder e influência: Madri, Tanger, Tenuán, Lisboa, elegantes esposas de generais, políticos e homens de negócios. É impossível não mergulhar na história, sentir as aflições que passa, temer seus medos e viver seus sonhos em tempos tão incertos: delegados, falsários, generais, jornalistas, professores, artistas – todos eles representam, no fundo, o complexo cenário de um mundo sob o comando dos homens. Nesse ponto, criar um livro cuja trama circula entre estes homens e duas guerras devastadoras é mais do que simbólico.
Ficção e realidade dividem diálogos e encontros, e nas páginas de “O Tempo entre Costuras” temos o generalíssimo Francisco Franco, seu “cunhadíssimo” Ramón Serrano Súñer e todos os grupos políticos e para-militares da época: a Falange, os nazistas, a Divisão Azul, Mussolini, os ingleses. Só que muito mais do que um romance de guerra, este livro é um livro sobre uma mulher em tempos de guerra.
Os preâmbulos da Segunda Guerra Mundial dominam a terceira parte do livro, quando Sira reconstrói sua vida e adota uma nova identidade em sua terra natal, Madri. Como espiã dos aliados, sua vida dá mais uma guinada, e antigos personagens voltam à cena. Saindo do lugar comum que domina as prateleiras de literatura estrangeira atualmente, conhecemos um tempo e um lugar pouco valorizados pela história ocidental; páginas hediondas que foram veladas aos olhos públicos. Com uma narração em primeira pessoa ágil, eloqüente e repleta de emoção, María Dueñas nos apresenta uma mulher com M maiúsculo, que construiu seu futuro e sobreviveu às incertezas da vida com a delicadeza e a força necessárias que somente a vontade de viver intensamente pode equilibrar. Leitura mais do que recomendada!
>> Resenha originalmente postada em www.up-brasil.com