Arine-san 21/12/2015Assim seriamos nós sem o sexo?Ursula K. Le Guin, uma das autoras mais famosas de ficção cientifica, conseguiu ir além na luta feminista pela igualdade de gêneros. Usando viagens intergaláctica como pano de fundo e um homem muito humano como protagonista, ela nos leva ao mundo gelado de Gethen, onde tudo é inverno - mas nem de longe isso é o de mais anormal no planeta. Já imaginou um mundo sem as barreiras sociais que permeiam o homem e a mulher? Um mundo sem responsabilidades de sexo, sem machismo, sem homofobia, sem violência contra o gênero mais fraco? Bem vindo ao planeta Inverno de Ursula.
Publicado pela primeira vez em 1969, o livro narra uma sociedade quase medieval num imenso mundo de gelo sem fim. A Mão Esquerda da Escuridão é um livro de ficção cientifica, sim, mas o que Ursula quer fazer é apontar como o sexo (de um modo geral) moldou nossa sociedade de uma forma doente. Como gerar essa reflexão? Criando uma sociedade em que os gêneros simplesmente não existem e o sexo não é ferramenta nem de prazer, nem de poder, como em nosso mundo. Somos apresentadas, logo de inicio, à Genly Ai, um homem de nosso planeta que foi mandado a uma missão até o estranho planeta de Gethen, onde os humanideos não são homens nem mulheres - e ainda assim os dois - à todo momento.
“Como se odeia ou como se ama um país? [...] Conheço gente, conheço cidades, fazendas, montanhas, rios, rochas, sei como, ao entardecer do outono, o sol cai oblíquo sobre certa terra arada nas montanhas; mas qual a finalidade de dar fronteiras a isto tudo, ou dar-lhe um nome e deixar de amar, no momento em que muda de nome?”
A missão de Genly exige que ele convença governantes locais a se unirem a um tipo de ordem universal que une raças “humanas” - no caso, pensantes e organizadas em sociedade - para troca comerciais e de conhecimento. Em Gethen, há muitos desafios quanto à isso. Gethen é um planeta de nações que não gostam uma das outras, mas não se dedicam à guerra, algo que intriga Genly. Todos, definitivamente todos, parecem carregar caracteristicas tanto femininas quanto masculinas, e a procriação da especie transforma, momentaneamente, cada um do casal em algum dos gêneros. O efeito disso sobre a sociedade é muito visível: qualquer um pode ser mãe, pai, político, ou qualquer outra coisa. Para Genly, um homem, entender o funcionamento dessa sociedade exige muito mais que abdicar da ideia de homem ou mulher, exige que ele passe a ver as pessoas não como ela enxergava aqui - um homem, uma mulher -, mas como pessoas. Só pessoas. Nada de papéis sociais implícitos, como ele estava acostumado a ver.
“Creio que ele acha que chorar é mau ou vergonhoso. Mesmo quando estava muito mal e efraquecido, nos primeiros dias da nossa fuga, ele escondia o rosto de mim quando chorava. Que razões pessoais, raciais, sociais, sexuais - que eu sei? - tem ele para não chorar?” - questiona Estraven, gentheiano, sobre Genly Ai
A história dá diversas reviravoltas, enquanto Genly tenta entender essa estranha sociedade ao mesmo tempo que tenta cumprir sua missão. O livro acaba se tornando um embate de joguinhos políticos internacionais, e Genly, no meio de tudo isso, corre perigo. Ele encontra amigos, descobre o amor, vê na face do inimigo um amigo fiel, desbrava o continente pra se salvar… São muitas coisas, mesmo, nas 295 páginas que Le Guin escreveu.
Apesar da história ser bem movimentada, a narrativa sempre em primeira pessoa dá um toque mais intimista para tudo que está acontecendo. Para alguns, isso transformará a leitura num trajeto lento e que precisa ser trilhado com paciência; para mim, que adoro entrar na cabeça de personagens interessantes, essa narrativa foi uma dádiva. Quando a autora decide abrir o leque para um outro personagem - que ninguém imagina ganhando tanto destaque -, a leitura torna-se ainda mais interessante.
Gethen e sua falta de guerra e sexo por prazer me lembrou uma coisa interessante que somos apresentadas à filosofia logo no inicio de nosso aprendizado na disciplina. O desejo, dizem, movimenta o homem à viver, e movimenta outras coisas, como a guerra. Fiquei pensando se a autora pensou nesse detalhe ao criar uma sociedade tão ambigua, em que os seres são homens e mulheres e não pensam no sexo como prazeroso. Uma sociedade que não está em busca do desejo ou prazer, seja ele de qual forma for… Só está ali para sobreviver, e nem sempre com regalias. Gethen chega a soar um mundo medieval, sem tecnologias apuradas, mas ainda assim com uma gente de intelecto desenvolvido e política acirrada. Assim seriamos nós sem o sexo? A autora parece perguntar ao leitor isso à todo momento.
Como uma interessada pelas questões de gênero e afins, a leitura foi como olhar para um todo e subentender a origem num único detalhe. Longe de estar aqui dando um veredito sobre a qualidade, ou não, do livro, acho que quem se interessa pelo mesmo assunto pode se apaixonar pela autora assim como me apaixonei. A leitura é lenta, mas não parada, e Le Guin sabe enfiar o leitor na cabeça de seu protagonista como muito autor não sabe fazer. Quem sabe, Genly Ai talvez seja a própria autora conversando conosco sobre um tema, tão vivo e humano como ele é. Esse é o livro que prova que ficção cientifica não é puramente sabres de luz e batalhas no espaço; um bom romance com toque psicológico e analítico pode ser, também, uma boa ficção cientifica, como A Mão Esquerda da Escuridão é.
site:
https://redatoraquele.wordpress.com/2015/12/21/resenha-a-mao-esquerda-da-escuridao-ursula-k-le-guin