Laura Brand 27/10/2020
Nostalgia Cinza
Um clássico é um livro que ainda não terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Essa máxima de Ítalo Calvino poderia ter sido pensada para o livro A Mão Esquerda da Escuridão. Um clássico da literatura nerd, escrito por uma mulher nos anos 60 e considerado um dos livros mais importantes da década. Saiba mais sobre esse clássico da ficção científica na resenha de A Mão Esquerda da Escuridão!
A Mão Esquerda da Escuridão é um livro diferente de tudo o que já li, tanto dentro da ficção científica quanto na literatura em geral. A androginia é abordada de forma bem interessante e extremamente criativa, deixando o leitor curioso ao longo de todo o texto. Além da própria narrativa ser bem prazerosa, gostei bastante as reflexões levantadas pela autora por meio do olhar dos personagens. Uma delas, a respeito da própria androginia, ficou comigo ao longo de toda a leitura: “eles não são neutros. São potencialidades”.
É interessante citar uma fala de Neil Gaiman, já no prefácio, porque situa bastante o leitor e mostra o que esperar do livro: “Li A mão esquerda da escuridão aos 11 ou 12 anos, e isso mudou o modo como eu olhava o mundo. Até então eu tinha certeza de que havia garotas e garotos, homens e mulheres, e eles satisfaziam os papéis que lhes foram atribuídos, porque era simplesmente o modo como as coisas são: as diferenças entre os sexos eram reais e imutáveis. Depois de ler este livro, papéis sexuais, suposições de gênero, o modo como nos relacionamos uma com os outros como homem ou mulher - todas essas coisas pareceram subitamente arbitrárias.”
Dentro da universalidade de A Mão Esquerda da Escuridão podemos observar a divisão política e a polaridade de culturas e pensamentos, a tentativa de se encaixar em uma sociedade que se torna hostil por meio da diferença entre os povos, os conflitos e dramas familiares, e a busca por conexões e laços, independente do lugar. A Mão Esquerda da Escuridão também é a história de um estrangeiro tentando se adaptar a um mundo culturalmente e biologicamente diferente, dividido em dois governos e com uma tensão palpável e latente, um panorama extremamente atual.
O livro aborda de forma interessante como nos relacionaríamos com os outros sem a barreira de gênero imposta por uma sociedade binária. Um mundo sem rótulos, mas que mantém algumas das estruturas inerentes à condição humana e/ou de indivíduos pensados de forma semelhante aos humanos.
Além disso, é interessante observar como, mesmo em um mundo onde a ideia de masculino e feminino cai por terra, ainda existem conflitos familiares, disputas de poder e desavenças, mas como isso tudo pode acontecer sem a influência da visão binária de gênero. A partir daí, os conflitos surgem mais como uma questão relacionada à diversidade de comportamentos e pensamentos, o que sinto particularmente como um refresco em meio a tantas histórias pautadas por visões binárias e estereótipos nocivos às discussões do século XXI. Como é mencionado no livro: "julga-se ou respeita-se uma pessoa apenas como ser humano. É uma experiência espantosa".
A sensação de movimento é constante ao longo de toda a leitura. Isso porque a narrativa se passa em vários lugares, estamos constantemente nos movendo com os personagens, migrando de um lugar para o outro e viajando pelo tempo de acordo com flashbacks e flashforwards que a autora escolhe nos presentear para podermos viver a história com os personagens.
Mesmo tendo em mãos uma narrativa inteligente e completa, as histórias paralelas foram o que mais me interessou no livro. A jornada de Ali e Estraven, os dois narradores principais, é bem interessante, principalmente quando acontecem os diálogos a respeito das diferenças entre os indivíduos na Terra e em Gethen, ainda mais em relação à gêneros. Mas me sentia mais envolvida quando, entre esses capítulos, podia ter acesso a contos, mitos e histórias desse povo e desse mundo tão ímpar. Fiquei curiosa para entender mais sobre a mitologia desse planeta e suas ancestralidades.
Um dos pontos altos do livro é, sem dúvidas, o mundo polarizado de Gethen. A Mão Esquerda da Escuridão é um belíssimo passeio por paisagens inóspitas, digno de um excelente cli-fi. O cenário ganha muito espaço na historia e é basicamente o que conduz a narrativa. Sempre me interesso bastante por livros que conseguem trazer a atmosfera para perto do leitor e A Mão Esquerda da Escuridão foi uma surpresa muito agradável nesse sentido.
A não ser por alguns diálogos que tratam de forma estereotipada o que representa o feminino e o masculino (algo comum principalmente se pensarmos no contexto em que a história foi escrita e dentro do segmento literário no qual ela está inserido), o livro continua extremamente atual e é difícil lembrar que foi escrito há mais de 50 anos.
A Mão Esquerda da Escuridão é um marco da ficção científica e é, além disso, uma referência para a discussão de gênero dentro da literatura moderna. O livro tem como elemento mais marcante e como diferencial a androginia, mas ela não é o foco do livro. Assim como todo clássico, A Mão Esquerda da Escuridão traz universalidades que fazem com que todo leitor, não importa a época ou o lugar, se identifique de alguma forma.
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