Gabriel 07/02/2024
Como começar a falar desse livro?
Um encontro com uma narrativa pouco usual, e ao meu ver, a melhor que um livro pode oferecer: o fluxo de consciência. Estilo narrativo que caracteriza a escrita de Clarice e é inaugurado por ela no cenário da literatura brasileira, justamente com essa obra.
Na história (muito mais que uma história!), acompanhamos Joana, uma personagem complexa, intensa, cheia de dúvidas e questionamentos a respeito da existência e da realidade. Um prato cheio para quem deseja mergulhar no que há de mais profundo no psiquismo humano e na natureza do real. Com o fluxo de consciência, acompanhamos cada pensamento da protagonista - e, em alguns momentos, de outros personagens também - o que nos possibilita mergulhar, junto com ela, em suas reflexões.
Joana sente muito, pensa muito. Uma moça dos anos 40 que, desde a infância, demonstra o potencial disruptivo em sua forma de perceber as coisas e em seu desejo de viver, de como viver, o que se é, o que não se é, o que mais importa, o que não importa, o que se quer falar e não se consegue, etc etc. "Ah, são tantas coisas impossíveis!", ela mesma reflete ainda criança.
Caracterizado como um "romance de formação", o livro nos permite acompanhar Joana desde sua infância até a vida adulta. No entanto, como já indicado, isso não ocorre de modo linear. Não mesmo, e aí está a graça.
Na narrativa não linear proporcionada pelo fluxo de consciência, o que nos guia é, sobretudo, a associação feita por Joana entre os eventos, e não uma suposta ordem lógica que os articula. Nesse sentido, principalmente na primeira parte, é difícil separar passado, presente e futuro; memória ou situação presente. Na maior parte das vezes, nos vemos mergulhados em situações preenchidas por sentimentos e pensamentos intensos; sendo seguidas por outras e outras. Em qual delas Joana de fato estava, e o que era lembrança? Difícil de dizer, mas nisso a potência da narrativa. Uma representação do psiquismo e sua temporalidade própria, fora da lógica externa.
Em alguns momentos, contudo, é possível diferenciarmos um pouco mais (mas será que isso seria importante?) e entendermos qual situação está se passando no momento, sobretudo na segunda parte.
De todo modo, o que temos a oportunidade de acompanhar é a trajetória de uma moça dos anos 40 muito à frente de seu tempo e guiada por vontades, desejos, reflexões e indagações muito além do que suas próprias palavras são capazes de expressar. Ah, a distância entre o pensamento e a palavra, ela dizia. Por isso inventamos palavras, por que não? Ainda assim.
O que vemos em Joana é a complexidade - humana e da existência, da realidade-sua expressão mais crua, mais sincera, de tal modo que apenas alguém com a sensibilidade de Clarice Lispector conseguiria fazer passar tão intensamente. Ao meu ver, nada mais encantador. O tipo de livro que não queria que terminasse, que não queria deixar ir. Um novo favorito e uma nova obsessão por Clarice.