willian.coelho. 24/12/2020
Uma obra introspectiva e, ao mesmo tempo, marcante.
“As meninas” é, segundo a própria autora, a renomada escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, o romance mais importante do conjunto de sua obra. Lygia tem 97 anos (2020) e conviveu com prestigiados escritores, como Jorge Amado e Clarice Lispector. Conforme entrevista no programa Roda Viva, afirmou ter descartado diversos escritos, uma vez que os considerava imaturos, de baixa qualidade; sua obra inicia com Ciranda de Pedra (1955). Durante o período que escreveu “As meninas”, o Brasil estava sob a ditadura militar (1964-1985), em seu momento de maior repressão: o governo Médici (o AI-5 foi emitido em dezembro de 1968). O livro, portanto, serve, de certo modo, como registro documental, na medida em que é importado de dentro desse momento histórico e, mais do que isso, o aborda diretamente. Há uma passagem em que é citada abertamente uma sessão de tortura; Lygia disse que sua obra (lançada em 1973) não foi censurada, dado que o censor a achou chata demais e não leu até o trecho. A ficção se passa no ano de 1970, o que só será constatado pelo leitor consciente dos fatos históricos, pois, em um momento do enredo, há menção sobre a soltura de 40 presos políticos (que foram enviados à Argélia). Isso aconteceu, quando os grupos revolucionários sequestraram o embaixador alemão Ehrenfried von Holleben (não confundir com a captura do embaixador americano, fato que ocorreu antes, e, na ocasião, foram exilados 15 presos no México).
A narrativa acompanha três meninas universitárias, no estado de SP, que vivem em um pensionato de freiras. São três personagens bastante distintas, cada uma com sua personalidade bastante ressaltada e com suas problemáticas. Lorena cursa direito, é burguesa (inclusive nos costumes refinados) e está loucamente apaixonada por um médico bem mais velho e casado. Lia cursa ciências sociais, veio da Bahia, é pobre e milita em algum grupo de esquerda contra a ditadura. Ana cursa psicologia, é muito bela, viciada em drogas e altamente atormentada psicologicamente. O texto se preocupa em demonstrar a herança familiar: as pessoas são condicionadas pela cultura, educação, afeto que receberam (uma visão realista sobre meritocracia). Lorena é da classe alta rural, Lia é filha de uma baiana pobre com um ex-nazista, Ana não conhece seu pai e sua mãe, marginalizada, se suicidou. Pontos relacionados ao pensamento da época (?) são largamente tratados, tal e qual a independência feminina, dogmatismo religioso, homossexualidade, recismo, etc.
O romance é estruturado em 13 longos capítulos; no entanto, há pouca ação, poucos acontecimentos marcantes, tudo poderia ser resumido em um período. Lorena nutre um amor platônico (que nunca é correspondido), o namorado de Lia é um dos 40 que são libertos e exilados na Argélia, Ana morre de overdose e é desovada em uma praça pelas amigas. Contudo, isso não significa que o enredo não tenha profundidade, há muitos capítulos descrevendo os pensamentos de cada protagonista: seu passado e presente estão bem situados na trama. Isso ocorre com a alternância entre um narrador em terceira pessoa (bastante limitado, servindo de elo de coesão) e as três protagonistas em primeira pessoa. Algo bastante genial é a estrutura linguística usada nos pensamentos de cada menina: Lorena pensa e fala de modo mais rebuscado (suas orações são mais complexas); Lia é simples, natural; Ana é truncada (seus períodos não se completam, sua sintaxe é deficiente). Alguns vocábulos podem soar bastante arcaicos; é, de modo geral, uma leitura fácil, todavia.
Em 1995, foi lançada uma adaptação em longa, aproveitando-se da exigência da leitura da obra para o vestibular da FUVEST. O perfil das atrizes contratadas para interpretar os papéis da Ana e da Lorena foi satisfatório, Cláudia Liz (como Ana Clara) e Adriana Esteves (como Lorena). Não obstante, a Drica Moraes (como Lia) não foi a escolha certa, visto que fez o papel de uma personagem parda: na obra, há diversas menções ao cabelo crespo, à descendência baiana (não há negros no filme). Quanto à execução dos papéis, realmente ninguém brilha: diálogos truncados, altamente artificiais (adaptar uma obra tão íntima foi demais para o diretor Emiliano Ribeiro). Ademais, faltam trechos importantes na história, ou os mesmos ficam inacabados. É o caso do assassinato de Rômulo pelo irmão Remo (irmãos de Lorena): no livro, paira uma dúvida sobre a verossimilhança do fato; no filme, isso é brevemente mencionado e ainda ligado ao romance de Lorena (relação inexistente no original). A profundidade de Ana Clara é totalmente omitida (torna-se um elemento fútil): o abuso pelo dentista (em troca de uma prótese dentária) é substituído por flashbacks desconexos; não há citação sobre sua mãe e seu suicídio. Os demais aspectos da mise-en-scène deixam bastante a desejar: excesso de cortes, a câmera parece não saber se situar muito bem, algumas cenas parecem desengonçadas, o figurino é apenas operante e o cenário é ruim (um filme de 800 mil dólares poderia se dar ao trabalho de reproduzir ao menos as cores do quarto de Lorena, a cama dourada, o papel de parede…).