gbrxavier 26/02/2024
Poderoso, lindo, emocionante.
Persépolis chegou até mim da forma mais despretensiosa possível. E como tudo aquilo que é poderoso e nos pega desprevenidos, me deixou desnorteado ao final, atônito, ainda buscando entender o que, em mim, aquilo tinha causado.
Quando adolescente, meu irmão tinha uma pequena coleção de HQs dos quais eu lia muito. Lá, aprendi a gostar de heróis como o Homem-Aranha e de bons malandros como o Zé Carioca. Levei o costume à frente e, já na pré-adolescência, passei a comprar os meus próprios quadrinhos e mangás. O tempo passou, minha leitura amadureceu, tornou-se mais densa e eu acabei abandonando os quadrinhos. Achei, por muito tempo, que não havia como contar histórias profundas nesse formato; que quadrinho era mais descanso do que provocação. Então encontrei Persépolis, na estante de uma pessoa bastante querida e que admiro muito como leitora. Ela disse simples e sucintamente que eu precisava lê-lo. E eu, felizmente, acreditei. Obrigado, Anna!
Persépolis é uma autobiografia escrita e ilustrado por Marjane Satrapi, uma mulher iraniana que nasceu de uma família moderna e politizada antes da revolução islâmica iraniana. Na sua infância, ouvia rock, estudava no Liceu Francês de Teerã, brincava com os amigos e amigas na rua, viajava com os pais e amava profundamente a avó, que tinha um cheirinho único de lavanda. Aos 10 anos, em 1979, ano da revolução, tudo mudou. Bastante inteligente e questionadora, cheia de planos e sonhos, Marjane se viu obrigada a usar véu, deixar o Liceu, estudar em salas só de mulheres e construir sua identidade sobre repressão e violência. Viu amigos e parentes sofrerem (e sofreu junto), acompanhou a guerra Irã-Iraque após a revolução, viu seu país se transformar em uma pilha de escombros. Tudo isso aos olhos da criança que foi. E, apesar de criança ser criança em todo lugar do mundo, como diria nosso brasileiríssimo Belchior: qualquer sofrimento passa, mas o ter sofrido não. Marjane nunca mais viveria outra infância. E aquela a acompanharia pelo resto da sua vida. Quando adolescente, foi mandada à Europa pelos pais em vista de um futuro melhor, longe do Irã. E longe de casa, sofreu mais uma vez. Em solidão. Longe dos estrondos das bombas, dos assovios dos aviões e do cheiro de lavanda da avó, que quase tudo pacificava. Era uma terceiro-mundista na Europa e uma rebelde na sua pátria. Qual era o seu lugar, afinal? O que restou da criança que foi Marjane e o que ela fez dela é o que a gente vê nesse livro.
Pesada, densa, dramática e violenta, Marjane consegue desenhar sua própria história de forma sutil, suave, cheia de ternura e até humor em algumas ocasiões. Esse feito sublime, só consegue ser feito, na minha opinião, por ser no formato de HQ. Sem o lirismo e a percepção visual dos elementos gráficos, desenhados pela própria autora, seria uma tarefa quase impossível de ser feita com tanta maestria. Cada cena viaja da retina diretamente pro coração. Persépolis é uma quebra de expectativas, uma leitura extremamente necessária e poderosa pra nós, ocidentais, que muito e há muito tempo ouvimos falar dos conflitos do oriente médio. Aqui, contado por uma mulher que viveu tudo isso e sofreu todas as consequências de ter vivido, não por um repórter europeu ou estadunidense a milhares de léguas de qualquer sofrimento, humilhação moral, dúvidas e martírio existencial provenientes dos horrores bélicos. Nesse livro, Marjane não faz dela nem da sua terra coisa santa, muito menos vitupera seu próprio contexto e lugar. Não romantiza, mas também não recrudesce. Em Persépolis, Marjane relata o que é, do jeito que é. Aos olhos da criança, da adolescente e da adulta. Esse é, sem dúvidas, o melhor livro que li nos últimos meses. E é leitura que recomendo a qualquer pessoa que queira, de alguma forma, se conectar um pouco mais à história dessa e de tantas outras Marjanes espalhadas pelo mundo. Persépolis pertence agora a um seleto grupo de livros aos quais me alegram profundamente o fato de saber que eu poderia jamais tê-los encontrado, mas os encontrei. E será por muitos anos, certamente, um dos meus favoritos. Esses a gente não escolhe. Eles que escolhem a gente.