Alcinéia_az 03/06/2015
O livro “Carta ao Pai” mostra a sensação de fracasso que o filho tem perante a vida por causa de nunca ter sido reconhecido pelo seu pai, e isso fez dele alguém inseguro e medroso, pois nunca recebeu apoio de quem ele mais respeitava, pelo contrário, só criticas, fazendo com que ele ficasse angustiado e perdido diante das escolhas que a vida lhe impunha.
*** Foi por intermédio da extraordinária imagem do pai estendido sobre o mapa-múndi que Kafka consegue figurar na Carta tanto a falta de espaço do filho oprimido quanto a violência sem fronteiras da dominação. Diante de uma metáfora tão poderosa, talvez não seja descabido lembrar, neste posfácio, duas observações feitas por Adorno, uma sobre o próprio Kafka, a outra de ordem mais geral. A primeira diz o seguinte: “A origem social do indivíduo revela-se no final como a força que o aniquila. A obra de Kafka é uma tentativa de absorvê-la”. A segunda afirma que, quando alguém mergulha em si mesmo, não encontra uma personalidade autônoma, desvinculada de momentos sociais, mas sim as marcas de sofrimento do mundo alienado.
*** O que para você não tem consequências pode ser (para mim) a tampa do meu caixão.
*** Ora, no fundo você é um homem bom e brando (o que se segue não vai contradizer isso, estou falando apenas da aparência na qual você influenciava o menino), mas nem toda criança tem a resistência e o destemor de ficar procurando até chegar à bondade. Você só pode tratar um filho como você mesmo foi criado.
*** Creio que você tem talento de educador; a uma pessoa da sua índole você certamente teria sido útil através da educação; ela teria percebido a sensatez daquilo que você lhe estava dizendo, não teria se preocupado com nada além disso e dessa maneira levaria as coisas calmamente a termo. Mas para mim, quando criança, tudo o que você bradava era logo mandamento do céu, eu jamais o esquecia, ficava sendo para mim o recurso mais importante para poder julgar o mundo, sobretudo para julgar você mesmo, e nisso o seu fracasso era completo.
*** Perdi a confiança nos meus próprios atos. Tornei-me instável, indeciso. Quanto mais velho ficava, tanto maior era o material que você podia levantar como prova da minha falta de valor; aos poucos você num certo sentido acabou tendo realmente razão. Previno-me outra vez de afirmar que me tornei assim só por sua causa; você apenas reforçou o que existia, mas reforçou muito, justamente porque diante de mim você era muito poderoso e aplicou nisso todo o seu poder.
*** Eu podia desfrutar o que você me dava, mas só com vergonha, cansaço, fraqueza, consciência de culpa. Consequentemente, por tudo isso eu só conseguia ser grato como um mendigo, nunca através da ação.
*** Você chamava os empregados de “inimigos pagos”, e eles com efeito o eram, mas antes ainda de terem se transformado nisso você me parecia ser o “inimigo pagante” deles.
*** Julgava-me ainda em condições de chegar a ter uma verdadeira profissão? Minha autoavaliação era muito mais dependente de você do que de qualquer outra coisa, por exemplo de um êxito externo. Este era o reforço de um instante, mais nada, no entanto do outro lado o seu peso me puxava para baixo com muito mais vigor. Eu pensava: nunca vou passar do primeiro ano primário, mas consegui e até recebi um prêmio; certamente porém não vou ser aprovado na admissão ao ginásio, mas fui bem sucedido; agora entretanto vou sem dúvida fracassar no primeiro ano ginasial — não, não fracassei, e assim continuei sempre em frente. Mas o efeito não foi um incremento de confiança; pelo contrário, sempre estive convencido — e tinha a prova formal disso na sua cara de rejeição — de que quanto mais êxito tivesse, pior deveria ser o resultado final.
*** É como se alguém tivesse de subir cinco degraus de escada e uma segunda pessoa apenas um degrau, mas que, pelo menos para ela, é tão alto quanto aqueles cinco juntos; o primeiro vai vencer não só os cinco degraus, mas também centenas e milhares de outros, terá levado uma vida ampla e muito fatigante, porém nenhum dos degraus que subiu terá sido para ele tão importante como, para o segundo, aquele degrau único, primeiro, alto, impossível de escalar com as forças todas de que dispõe, e que ele não só não pode subir como tampouco passar por cima.