spoiler visualizararthurcamandio 01/12/2021
O Estranho Mundo de Bettega
Em Deixe o quarto como está somos apresentados a catorze contos, alguns beirando o insólito, outros mergulhando no fantástico. Andando ao lado do realismo mágico, os contos geralmente são carregados com o humor sutil e inteligente do autor. As histórias variam de tamanho, algumas se limitam a cinco páginas, enquanto outras passam das dez.
Não é difícil entrar no universo do autor. No terceiro conto, já estava completamente imerso nos mundos criados por Bettega. Entretanto, sinto pena daqueles que desistem no primeiro conto, batizado de Autorretrato, na minha opinião o mais fraco do livro. É um dos únicos narrados em terceira pessoa – dividindo o posto com O encontro – e se propõe a contar sobre a invasão de uma casa por dois garotos. Por que o título é Autorretrato? Não sei. Qual o significado? Não sei. Mas, os meus “não seis” não são o motivo pelo qual não gostei muito da história de abertura. Esse primeiro simplesmente não me cativou, diferente dos outros treze.
Logo depois dele, o leitor é abençoado com Exílio, uma narrativa que não saiu da minha cabeça desde o momento em que a li pela primeira vez. A premissa é simples: o dono de uma loja decide sair da cidade devido a falta de clientela. Uau! Foi aqui que percebi a genialidade de Bettega, que sabe contar uma história como poucos. O cenário apocalíptico de cidade fantasma e o sentimento de condenação eterna me levaram a cidades do interior do Rio Grande do Sul que já tive a oportunidade de conhecer. A ambientação bem construída torna esse um dos contos mais marcantes do livro.
E quando eu achei que não podia melhorar – isso ainda nas primeiras dezoito páginas do livro – sou surpreendido com o meu mais novo conto favorito. Aprendizado é, talvez, o mais pé no chão da coletânea. Aqui, o insólito quase não se faz presente; entretanto, a ambientação detalhada, os personagens marcantes, os diálogos memoráveis e a escrita peculiar de Amilcar estão! Na história, o narrador vaga pela cidade à noite, prestes a perder a mãe e o emprego.
O narrador é imperfeito, e isso é um dos pontos positivos do conto. A excelente construção do narrador – assim como da cidade, que quase atua como uma personagem aqui – prende o leitor de uma forma impressionante. A ambientação de Bettega encontra seu auge aqui, quase pude sentir a serração da cidade em meu próprio quarto.
O último conto que destacarei é A Cura, onde somos apresentados a um vilarejo que sofre com um vírus que causa cansaço. Não, não é Covid. Inclusive, esse conto foi escrito muito antes da pandemia de 2020, mas permaneceu surrealmente atual dentro desse contexto. Diria inclusive que é o conto mais atual do livro, publicado pela primeira vez em 2002. O vírus retratado causa cansaço nos enfermos e gera interesse por parte dos médicos, que estudam incansavelmente em busca da cura. Assim como na nossa realidade, a cura para a doença ainda não foi encontrada. Pelo menos aqui já temos vacinas. Vacine-se.
Sinceramente, eu poderia fazer um parágrafo para cada conto presente no livro de Bettega. Cada um possui um toque especial, algo de interessante. Em O Crocodilo I, o fantástico rola solto; em O Rosto, não consegui tirar os olhos do livro; em Correria, aprendi vários palavrões; em Para salvar Beth, enchi os olhos com lágrimas.
Deixe o quarto como está não é confuso, muito menos desinteressante. Ele é um livro único, uma coletânea de narrativas que poderia ser usada como exemplo de excelência em escrita. Infelizmente, os leitores estão cada vez mais mal-acostumados: buscam sempre por respostas fáceis. Deixe o quarto como está não precisa dar respostas. Aventurar-se pelos mundos criados pelo autor é mais do que o suficiente.
Terminei a leitura com o seguinte pensamento: “Como queria escrever que nem o Amilcar Bettega”.