spoiler visualizarSollyane 04/02/2021
Exemplo perfeito de obra prima, mas não 5 estrelas
À medida que um vírus, criado pelos seres humanos para ser usado, eventualmente, como uma arma biológica, ganha liberdade além das fronteiras de seu berço, o Departamento de Defesa dos EUA, a população sofre as consequências do Capitão Viajante. Sem tempo para uma intervenção, e sem imunidade para a maioria dos cidadãos, o agressivo vírus mortal assola 99% da população mundial, devido ao alto contagio e a negligência estatal. Entretanto, para os restantes 1 % o vírus é ineficaz, formando, assim, os sobreviventes da pandemia que, ao passo dos dias, serão envolvidos por sonhos teológicos e místicos numa busca por amparo e proteção. Porém, numa guerra entre o bem e o mal, interceptados por Randall Flagg e Mãe Abagail, o que será da sociedade sobrevivente? Quem vencerá, nas palavras de Glen, a magia negra ou a magia branca ?
A partir dessa premissa, Stephen King construiu um universo repleto de detalhes e teorias com sua imaginação sem limites que se saciou apenas com um livro de mais de 1.200 páginas. O enredo de ?A dança da morte? é progressivo e linear, não deixando a desejar com a narrativa em terceira pessoa, explorando, dessa maneira, todos os planos, os pensamentos e os sentimentos. Portanto, é uma narrativa profunda e envolvente, exceto quanto a descrição extremamente detalhada de uma situação ou um ponto específico ultrapassa o nível da curiosidade para o tédio. Afinal, é de se esperar que o livro seja descritivo com todo o seu direito, mas quando isso não acrescenta nada a história, isto é, quando é indiferente a referência ou a presença em si, aparenta ser mais um pretexto para ter um livro enorme do que realmente agregar no enredo. Essa questão é notória, inclusive, com personagens, a exemplo de Rita Blakemoor, dentre outros. Rita foi uma personagem descartável - literalmente - que só serviu de consolo para Larry Underwood, quando King poderia ter colocado logo de início a Nadine Cross, tornando um desenvolvimento melhor dos personagens.
Ademais, a questão do desenvolvimento dos personagens é sem dúvidas problemática em ?A Dança da Morte? . Enquanto Stu Redman torna-se o chefe do Comitê da Zona Franca e lidera a pequena cidade, assim como Glen Bateman instrui, com seu conhecimento de sociólogo , o rumo que a sociedade tomará e com suas teorias que moldam os pensamentos do comitê, Frannie Goldsmith, bem como Lucy e o resto das mulheres são esposas e incubadoras da humanidade , nas palavras de Randall Flagg. Eis que enquanto o desenvolvimento e aprofundamento das personagens femininas são escassos, no quesito de deixarem de serem vistas com toda a complexidade do ser humano a fim de personalidades futeis, mesquinhas e alienadas, nada além da superficialidade e clichê machista, os homens são os agentes da mudança. Frente a isso, os homens são os sociais, enquanto as mulheres são os capachos matrimoniais e maternais.
Nesse ensejo, a questão revoltante no livro é que não há sequer uma protagonista feminina forte ao nível do protagonismo masculino, uma ao menos. Sob esse prisma, uma vez que alguns personagens masculinos poderiam ser facilmente substituídos por femininos, por exemplo, o Glen, Stephen King decepciona com esse descaso quando deixa as personagens femininas de lado, à mercê de serem meras coadjuvantes supérfluas. Mãe Abagail que deveria ser o destaque de Bolder, a representação do bem, a força no leste dos EUA, torna a ser uma figura fraca, cansada e sempre submissa a seu Deus, nunca realmente ativa nas decisões importantes. Todavia no lado oeste dos EUA, Randall Flagg é jovem, hábil, ativo e emana força e poder. Além disso, o preconceito explícito no livro de King não ressalta os pensamentos pejorativos de outrem, que evidentemente existem, mas sim, um preconceito gratuito, isto é, sem a menor necessidade, como ? naquele jovem gordo ? ou ?primeiro feminista, depois lésbica ? .
Por outro lado, o enredo enriquece, na medida que adentra as paginas, com o misticismo. Com base em argumentos teológicos, o combate entre o bem e o mal se molda de forma brilhante. Entretanto, ironicamente Glen afirma que , no fim das contas, essa guerra mística é antagônica ao lado racional da sociedade pré pandemia, mas o desfecho foi justamente a junção da magia branca com o racionalismo. Foi a mão de Deus usando seu poder para detonar uma tecnologia radiativa, criação oriunda da ciência racional, a bomba nuclear. Doravante, após o fim das tensões, a cidade de Boulder começa a se reconstruir reciclando as tecnologias restantes, assim como fica evidente a busca por conhecimento por meio dos livros. Evidência, dessa forma, que para a sobrevivência é preciso pensar além do místico. Porém, caso seja extravagante demais, a junção dos dois lados é o ideal, em prol do equilíbrio. Logo, a complexidade moral e crítica foi muito bem trabalhada, mostrando todas as suas facetas, ponderando os prós e contras, delineando os efeitos.
Escrito em 1978 e republicado em sua versão original em 1990, embora ?A Dança da Morte? seja uma obra prima, pois discute profundamente a sociedade pós apocalíptica, a luta constante entre o bem e o mal, e sobretudo, a resiliência de sobreviver mesmo quando todos ao redor não resistem, não é um livro cinco estrelas, devido as inúmeras problemáticas de machismo, preconceito explícito, detalhamento excessivo , desenvolvimento aprofundado dos personagens seletivo, lacunas na história como: o que Mãe Abagail fez no deserto? , e também ao desfecho um tanto inesperado, rápido e simples demais para todo o resto do livro.
Em palavras derradeiras, é uma ótima leitura, num universo criativo e totalmente imprevisível, com complexidade e aprofundamento, em grande parte do livro. Uma longa e ótima jornada dentro do universo de King, mas com ressalvas.