Ana 16/10/2014
"Não espere pelo Juízo Final. Ele se realiza todos os dias."
Demorei a terminar de ler A Queda. Um livro pequeno, de 110 páginas, porém não é o tipo de leitura a que estou acostumada, o que o tornou um pouco difícil, mas não menos prazeroso.
Publicado em 1956 por Albert Camus, vencedor do Prêmio Nobel da Literatura, A Queda se passa em Amsterdã e é narrado por Jean-Baptiste Clamence, autodenominado juiz-penitente que conta sua história à um estranho que conheceu no bar Mexico-City.
O livro é escrito em forma de monólogo, ou seja, as falas do estranho com quem Jean-Baptiste conversa não são explicitadas e só temos alguns relances de seus questionamentos ou apontamentos quando o próprio Jean-Baptiste os menciona, como por exemplo quando se conhecem: Sou-lhe muito grato e aceitaria, com todo prazer, se estivesse certo de não bancar o intrometido. É muita bondade sua. Então, vou colocar meu copo junto ao seu. (p. 5).
Não sabemos o que o interlocutor está dizendo, embora possamos inferir das lacunas entre as frases que ele tenha convidado Jean-Baptiste a se sentar com ele. E justamente esta ausência de falas nos dá a impressão de que somos nós mesmos quem estamos sentados no bar com o personagem ouvindo-lhe contar sua história.
Para responder à pergunta sobre o que seria um juiz-penitente, Jean-Baptiste passa a narrar, ou talvez a palavra correta seja confessar, sua história a fim de explicar de que se trata sua atividade. A partir daí, o livro aborda questões existências como amizade, lealdade, bondade, inveja, religião, liberdade, busca pela satisfação, entre outras.
O personagem principal usa valores considerados nobres como forma de se tornar uma pessoa superior aos demais: Compreendi, então, (...) que a modéstia me ajudava a brilhar; a humildade, a vencer; e a virtude, a oprimir. Fazia guerra por meios pacíficos e obtinha, enfim, pelo desinteresse, tudo que cobiçava. (p. 64).
Porém, este reconhecimento, entre outros, é parte da Queda de Jean-Baptiste, que pode enfim, reconhecer suas próprias falhas e fraquezas e com isso também observa as falhas e fraquezas da humanidade como um todo, questionando os valores adotados pela sociedade. Em muitos momentos, sentimos um grande desconforto por nos identificar com o cinismo, irônia e hipocrisia expostas pelo personagem.
Embora tenha sido escrito no pós-guerra, as reflexões apresentadas no livro permanecem atuais, uma leitura densa, que dá muito o que pensar. E talvez alguém possa pensar que é um livro negativo, mas ao contrário, creio que o autor teve a coragem de despir seu personagem de uma imagem socialmente construída, apresentando quem ele é na verdade, nem bom, nem mau, apenas humano, como todos nós.
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