Nathaniel.Figueire 23/05/2022Uma caricatura ácida contra o "homem bom", a "gente boa da roça", o "sal da terra"Para deixar bem claro: esta análise faz uma relação da obra com a conjuntura política de avanço do fascismo no Brasil a partir de uma perspectiva à esquerda do espectro político-ideológico. Geralmente não faço isso (só ler outras resenhas que já fiz), mas essa leitura em específico ganhou significado para mim a partir dessa perspectiva.
Por indicação da minha esposa, li esse livro em 2014. Ela me dizia que o humor da autora e o desenlace das histórias me agradariam muito. Porém, na época os contos não me causaram grande impacto...
Reli em 2022 e, dessa vez, adorei. O que mudou nesses 8 anos? A primeira hipótese (e mais óbvia) é que não sou o mesmo leitor de quase uma década atrás. As leituras que fiz durante esses anos podem ter ressignificado minha recepção. Porém. não acho essa hipótese completamente correta neste caso.
Minha maturidade pode si, ter feito eu perceber a genialidade do humor sombrio de Flannery O'Connor. Tenho certeza de que hoje tenho também uma melhor compreensão do que foi os Estados Unidos dos anos 1950 e dos alvos dos deboches da autora (os brancos no decadentismo sulista). Entretanto, acredito que o que mudou minha perspectiva sobre esses contos foi principalmente a conjuntura onde atualmente vivo.
Explico-me.
Em 2014, apesar dos diversos problemas que sofríamos coletivamente no Brasil (pós manifestações de 2013, eleições etc), a representação do "cidadão de bem" ainda estava sendo gestada no ventre pútrido da extrema-direita brasileira: essa coisa caricatural sempre existiu em nossa história, herdeira do pensamento escravocrata e colonial, mas há muito ela era periférica. Naquela época, o deboche a um grupo social que se considera melhor que os outros, mesmo sendo totalmente tosco, ignorante, kitsch e vivendo em um ambiente de decadência não teve muito apelo para mim. Agora, em 2022, quando os "cidadãos de bem" possuem ampla representação política e nos meios de comunicação, o "alvo" de Flannery O'Oconnor e o tom de deboche que ela trata a casta branca decadente do sul dos Estados Unidos fez todo o sentido para mim.
Pego como exemplo o conto como o que dá o nome ao livro, "É difícil encontrar um homem bom". A avó da família, típica representante do “alvo” da autora, fica constantemente falando desse "homem bom", o homem branco honesto do passado que agora "é difícil de encontrar". Não é preciso muito esforço para associar a conversa que a senhora tem com o dono do restaurante de beira de estrada com as conversas típicas da galera vestida de verde e amarelo que hoje enche a boca para regurgitar senso-comum e nostalgia sobre um passado de glórias inexistentes (tudo sobre um forte verniz de hipocrisia).
Os contos dela são assim um desfile de deboche sobre essas criaturas simplórias, cheias de preconceito, egoístas e aproveitadoras que não cansam de dizer para si mesmos que são "pessoas de bem", a "gente boa da roça", o "sal da terra", muitas vezes se achando inteligentes e perspicazes (sendo que são claramente uns ignorantes). Não me é assim muito difícil traçar um paralelo sobre esses tipos sulistas estado-unidenses dos anos 1950 representados pela autora e a casta de "cidadãos de bem" que acreditam agora estar "colocando o país nos eixos" atualmente no Brasil.
Nisso, O'Connor não debocha somente do pessoal ignorante da roça que se considera superior, (sendo que, na verdade, são uns pobres coitados que mal conseguem sobreviver em meio ao ocaso econômico do Sul). Ela debocha também dos supostos intelectuais, como no marcante conto "A gente boa da roça", em que a pretensiosa PhD em Filosofia é enganada por um vendedor de Bíblias que manipula à vontade esse estereótipo da pessoa boa do campo. (No mais, um ladrão de equipamentos que auxiliam na deficiência das pessoas macara o tipo de humor violento e macabro com o qual a autora pinta nesse livro o Sul dos Estados Unidos.)
O conto "O deslocado de guerra" é para mim o melhor da obra. A protagonista, que tem em alta conta a si mesma (como a maioria dos protagonistas desses contos) fica a história toda reclamando em como os negros e os brancos "gentinha" trabalham mal em sua fazenda, colocando o polonês refugiado de guerra como um exemplo que ela gostaria de ter como trabalhador. Porém, assim que esse trabalhador faz algo que fere sua moral de racista sulista (ele está tentando casar sua prima, loira, com um dos negros da fazendo, uma forma de assim retirar ela dos campos de concentração e trazer para os EUA), a protagonista acaba considerando o imigrante pior do que os outros trabalhadores. Ou seja, para essa mulher, ignorar a divisão racial de negros X brancos é pior do que fazer "corpo mole" no trabalho. Essa é a gente do sul dos EUA para O’Connor, pessoas que vão colocar sempre seus valores morais retrógrados à frente dos seus interesses econômicos.
O avô racista cheia de si que deixa o neto na mão em um momento de necessidade ("O nego artificial"); a professorinha decadente que vai se formar na faculdade as 60 anos e fica expondo um velho senil como um general (que, na verdade, era major) veterano da Guerra da Secessão ("O último encontro com o inimigo"); a velha que insiste em casar sua filha portadora de problemas mentais com um "homem bom" e acaba sendo roubada ("Salve sua própria vida"). Foi esse humor ácido da autora contra essas caricaturas existentes no mundo real que eu não tinha entendido há 8 anos, mas que agora, no Brasil de 2022, onde uma caricatura nos governa, faz para mim todo o sentido.
Definitivamente precisamos de autoras como ela no Brasil para representar os "verdadeiros brasileiros" na sua correta dimensão de pequenez, mesquinharia, ignorância e decadência.
Você não concorda? Bem, é seu direito, vivemos numa democracia (ainda) e a recepção literária sempre envolve subjetividade. Ficou ofendido? Entao provavelmente você se acha um "homem bom"...