spoiler visualizarLucas Sam 16/06/2020
Um perfeito retrato da imperfeita elite inglesa
Esta coleção de contos mostra perfeitamente, com altas doses de ironia, a conservadora elite inglesa do começo do século XX. Racista, ignorante e inconsciente de seus privilégios (apesar de fazer de tudo para não perdê-los), a persona elitista tem verdadeira aversão aos pobres e um medo incontrolável de empobrecer, como por exemplo Mrs. Cope, do conto Um Círculo no Fogo.
Outro aspecto que vale notar nos personagens é a preocupação com a manutenção do status quo. Isso justifica o medo de perder os privilégios, se tornar um "negro social", ou Negro Artificial, como define um dos títulos do livro. É este o motivo que leva um avô a ignorar o próprio neto para que ele não passe como esquisito ou caipira diante de uma multidão desconhecida, que faz com que Mrs. Cope se isole da população de classe inferior em uma fazenda, e trate os meninos que aparecem em sua residência como a escória da humanidade, despertando neles a rebeldia.
Mas mesmo a aceitação social não minimiza os efeitos da culpa, não alivia a dor de saber que é necessário ser podre por dentro para destacar-se na comunidade, assim como a história não perdoa. Nem pobres, nem ricos. É a história que condena o general no conto Um Último Encontro Com o Inimigo, um homem soberbo, orgulhoso de suas glórias no passado e que ainda vive pelas vitórias dos seus 40 anos. Morre engasgado com a própria arrogância, ouvindo discursos que destacam o poder da História, que ele tanto desprezava e se achava superior, enquanto seu corpo desliga aos poucos. A História vive, o homem apodrece.
Não poderia finalizar sem destacar a fineza e maestria de Flannery O'Connor ao desenhar narrativas tão envolventes, equilibrando humor e ironia com reflexão e horror. Por vezes, a ironia assombra mais do que a morte, em outras, a realidade parece ser mais fantasiosa do que o sonho. Há toques de realismo fantástico, principalmente pelo fato de que o mais doloroso é o não dito.
Um bom exemplo disso é o conto que dá nome ao livro, Um Homem Bom é Difícil de Encontrar. Não saber o que aconteceu com os demais familiares da vó e apenas imaginar como foi a morte deles é o que dá tons de terror ao conto. O dito e o não dito são os responsáveis pelo desenrolar da história e tem forte influência na narrativa. A confusão que a vó faz muda o destino de toda a família; quando o pai afirma "Esta é a primeira e última vez que sairemos do caminhão nesta viagem", no final do conto, ganha tons de premonição; se a vó não tivesse reconhecido o Desajustado e o alertado todos estariam vivos.
Sintetizando, a narrativa da obra é perfeita, mesmo que para isso seja necessário se fazer imperfeita.