spoiler visualizarMarcella 10/02/2022
Um ciclo de destruição sem fim
No final do século XXI houve uma guerra mortal. De cada lado do confronto havia um “príncipe” com um poder nuclear capaz de aniquilar o outro. A ciência havia criado essa arma com o intuito de apenas ameaçar o inimigo, e não de efetivamente usá-la, uma vez que a arma não destruiria apenas o lado contrário, mas o mundo todo. Entretanto, o poder político não se importou com consequências incertas, e ambos os lados usaram as bombas nucleares contra o inimigo. O resultado foi o chamado “Dilúvio de Chamas”, ou “Precipitação Radioativa”, que causou a destruição do planeta e a morte de quase toda a humanidade. Mesmo as pessoas das gerações seguintes sofreram e ainda sofrem com as consequências por séculos, já que várias crianças nascem com deformidades causadas por mutações genéticas da radiação.
A partir desse incidente, nasceu um ódio contra os poderosos e também contra o saber e a ciência (que possibilitaram a criação de algo tão destruidor). Um movimento foi criado, dos chamados “simplórios”, que realizaram a Simplificação - destruição de todo o conhecimento e assassinato de todos os poderosos e estudiosos. Alguns cientistas se refugiaram em santuários, acolhidos pela Igreja. Dentre esses refugiados está Leibowitz, um cientista que posteriormente fundou uma ordem religiosa, empenhada em salvar o conhecimento para o futuro, preservando a história humana através de copiadores e memorizadores. Leibowitz é morto pelos simplórios, e posteriormente canonizado, sendo cultuado pela Ordem de Leibowitz, que continua o trabalho de recuperar e guardar o conhecimento ao longo dos séculos.
Um Cântico para Leibowitz conta a história da humanidade após essa destruição nuclear. Dividido em 3 partes, ele abrange os principais eventos ao longo de 18 séculos.
Na primeira parte (por volta do ano 2500), a Ordem de Leibowitz está trabalhando para a canonização de seu santo.
Essa parte traz algo como o início da reconstrução da humanidade. A maioria das pessoas ainda odeia a ciência e os estudiosos, não quer avanço nem progresso, mesmo 6 séculos após o incidente; mas a Ordem ainda guarda os documentos e conhecimentos daquela época, mesmo que nada se compreenda deles. Os monges se limitam a copiá-los e guardá-los, sabendo que, embora eles nada compreendam, no futuro haverá homens que compreenderão, e poderão recuperar o conhecimento perdido.
A segunda parte (ano 3174) traz uma época de transição. Alguns estudiosos, como Thon Thadeo, começam a entender parte dos conhecimentos acumulados durante os séculos, e querem implantar o que já descobriram, para começar a recuperar o mundo pré destruição. Porém, há muitos grupos que se beneficiam com a ignorância generalizada (políticos), e outros que não querem mudança alguma (religiosos). É curioso que existem alguns monges tão condicionados a copiar e guardar os documentos que acreditam que essa preservação é um fim em si mesma: mesmo estando em uma era onde os estudiosos já conseguem decifrar o conteúdo, esses monges são relutantes em permitir que os documentos sejam abertos, usados e estudados - querem apenas preservá-los eternamente, sem qualquer utilidade além disso.
Nessa época já há guerra, mas ainda de forma rudimentar.
Em uma conversa muito interessante entre Thadeo e Dom Paulo, da Ordem de Leibowitz, o estudioso diz que consente com o poder político do Rei Hannegan, mesmo não concordando com suas atitudes e objetivos, porque o Rei lhe permite estudar. Thadeo acredita que não importa o que aconteça agora na guerra, pois a humanidade se beneficiará com esses estudos futuramente.
Já Dom Paulo não concorda com esta filosofia. 12 séculos atrás, a mesma coisa aconteceu, e a humanidade não se beneficiou - foi destruída. Os estudos dão controle sobre a natureza e poder ao homem, e é imprescindível saber quem vai usá-lo, com qual finalidade. Os estudiosos podem controlar os políticos que estão no poder? Podem garantir o que farão com esse poder que vem da ciência e do estudo? Ainda assim, Thadeo diz que não se pode esperar o homem se santificar para só então usar a ciência - “Se tentar salvar o saber até que o mundo se torne sábio, o mundo nunca o possuirá”
Ou seja, Thadeo quer o progresso pelo progresso, sem finalidade específica; quer apenas o desenvolvimento da ciência, não importa sua utilidade e quais suas consequências. Ele não quer aprender com os erros do passado e não tolera ser apenas um “redescobridor” de conhecimentos antigos; ele quer mais, quer se tornar criador de algo. Ele acredita que não podemos esperar o homem ser sábio para usarmos o saber, mas então para que serve o saber? Se já temos a consciência de que a humanidade não vai usar o saber de forma benéfica, porque insistir neste conhecimento específico? A ânsia de Thadeo em descobrir e avançar é egoísta, serve apenas para mostrar sua superioridade e poder individualmente, não se importando com consequências. No fim, ele não quer superar os antigos, apenas se igualar a eles, tão cego que não percebe que trilha o mesmo caminho do passado.
Dom Paulo consegue ver que esse caminho pode trazer os mesmos problemas, que a destruição do passado pode se repetir no futuro. Ele é pessimista, acredita que o mundo nunca irá melhorar, pois se o homem tiver conhecimento, inevitavelmente o usará para destruição.
No ano de 3781, na terceira e última parte do livro, a humanidade alcançou novamente a tecnologia, e a aperfeiçoou. Temos colônias em outros planetas, computadores avançados, robôs e, novamente, bombas nucleares.
Uma guerra nuclear está em iminência, nos mesmos moldes daquela de 18 séculos atrás. Duas potências se confrontam, uma ameaçando a outra, e prometendo agir por retaliação, sem se importar se isso causará a destruição de tudo.
Há 18 séculos os homens não sabiam as consequências de uma guerra nuclear, então é possível entender a continuidade daquela guerra. Porém, em 3781 há muitas informações sobre as consequências aniquiladoras; a humanidade ainda carrega as deformidades genéticas da guerra anterior, com várias crianças nascendo com doenças e deformidades físicas. Sabe-se de todas as mortes e destruição que ocorreram no passado, e tem-se consciência de que tudo se repetirá, talvez de forma pior.
Na Ordem de Leibowitz, o abade Zerchi acredita que os poderosos não vão iniciar essa guerra, exatamente por terem consciência das consequências generalizadas. Entretanto, preparando-se para o pior, mais uma vez a Ordem vai tentar salvar os conhecimentos e a história humana, agora enviando a memorabília e vários monges da Ordem para outro planeta. Isso significa que a expedição levará para outros locais o vírus da humanidade, causando a futura destruição destes outros planetas? Ou será que essas pessoas conseguirão trilhar um novo caminho?
Na Terra, a mudança não aconteceu. A humanidade seguiu o caminho de sua aniquilação, provando que mesmo com todo o conhecimento possível, a fome pelo poder de uma determinada classe falou mais alto. A guerra seguiu, as bombas foram utilizadas e tudo foi novamente destruído. Resta saber se ainda sobrou algum resquício dos seres humanos, para reiniciar o ciclo sem fim.
“Quando o massacre é respondido com outro massacre, estupro com estupor, ódio com ódio, não faz mais sentido perguntar qual machado está mais coberto com sangue; o mal, sobre o mal, sobreposto por mal.”