Portela 27/12/2021
"...a vastidão só é suportável através do amor"
Contato é o único romance do astrofísico Carl Sagan. Nele acompanhamos a história e a vida de Ellie Arroway. A obra é uma ficção científica e, como o próprio título sugere, narra o contato extraterrestre e os eventos que se desenrolam a partir disto.
Embora seja um livro fictício, e não um ensaio ou algum gênero do tipo, é possível perceber as opiniões de Sagan através da narração e do modo como a própria protagonista é construída, sua forma de pensar e de agir refletem muito as ideias que o autor transmite em seus outros trabalhos. Para citar algumas: incentivo à curiosidade, valorização da razão e da verdade, paixão pela ciência, questionamento da religião, ceticismo científico, entre outros.
O livro tem muitos pontos positivos em diversos aspectos. Comecemos falando sobre a verossimilhança com a realidade, mesmo se tratando de uma ficção. Sagan consegue montar essa história de forma muito convincente, uma vez que toda a trama segue à risca as leis da física, pelo menos até certo ponto da história, onde entram cenários e coisas que ainda não descobrimos como funcionam e se realmente existem. Entretanto, o caminho trilhado até a parte literal da ficção é bem fundamentado nas leis físicas. Por outro lado, essa aproximação da realidade também pode ser encarada como um problema, uma vez que muitos termos técnicos e teóricos são utilizados e, consequentemente, pessoas leigas não conseguirão entender, mas, independente disso, é possível compreender a história. Digamos que isso é apenas detalhe, preciosismo de Sagan. Logo, podemos dizer que esse aspecto é uma faca de dois gumes, tem seu lado bom e ruim.
O autor se aproxima do real de outra maneira também: ele consegue imaginar todo um cenário político, social, científico e religioso que tange a nossa realidade e possivelmente aconteceria em caso de contato extraterrestre. O envolvimento de autoridades governamentais, a reação da população mundial, o papel desempenhando pelos cientistas e os religiosos distorcendo os acontecimentos. Ao tratar de todos esses aspectos na história, fica claro que se algum dia algo assim acontecer, teremos um cenário parecido. Seria ótimo se todos lessem Contato, pois caso um dia vida inteligente além do planeta resolva nos enviar um ?oi?, teremos uma mínima noção de como proceder.
Uma coisa que me surpreendeu bastante e me deixou contente foi a representatividade feminina e a de etnias diversas na história. Eu diria que o posicionamento de Sagan foi visionário, pois, pelo menos pra mim, não era de se esperar que um livro que foi escrito em 1985 tratasse, com tanto esmero, temas tão debatidos atualmente já naquela época, onde não eram levantados esses tipos de debate. Muitas culturas e povos foram abordados, de maneira profunda até, diria eu, e a protagonista é uma forte figura feminina lutando para conquistar seu lugar na sociedade e no mundo científico.
Outro ponto interessante é a maneira que Ellie é desenvolvida. A história começa com o nascimento da mesma e segue até sua vida adulta, portanto podemos acompanhar o crescimento físico, emocional e intelectual da mesma. Isso traz profundidade à personagem. As qualidades e defeitos relatados, e minuciosamente explorados, fazem-na se tornar humana e a aproximam do leitor.
Se tratando de uma obra que aborda sobre a imensidão do universo, vida fora da Terra e fé versus razão, a obra traz uma densa parte filosófica e reflexiva acerca de diversos temas. Certamente é um livro que grandifica a mente e o espírito, pois provoca o questionamento e a reflexão. O mais interessante sobre a questão fé e razão é que a história conclui de um jeito que balanceia os dois lados ao trazer uma inversão de perspectivas, como se a fé se tornasse a ciência e a ciência se tornasse a fé. A frase anterior pode não fazer muito sentido, é preciso ler o livro para entender, mas Sagan fez um trabalho tão bem pensando nessa questão que, para mim, é um momento ímpar no livro e uma grande sacada para concluir o mesmo.
Uma coisa que, não necessariamente me desapontou, mas me deixou triste, foi o fato de o livro terminar sem uma conclusão da trama, digamos assim. É quase um final em aberto. Mas eu vejo também como uma forma do autor de dizer que tudo que precisava ser contado, foi contado, e mesmo que nos falte detalhes do que pode acontecer no futuro, foi um bom desfecho, pois meio que conclui a jornada de Ellie. Imagino que Sagan tenha parado nesse ponto, pois, a partir dali, ele estaria entrando em um terreno muito mais incerto e imaginativo, o que poderia arriscar um pouco a integridade e qualidade da história.
O livro, ao mesmo tempo em que é reflexivo e filosófico, também é muito poético. Isso é uma das coisas que me faz admirar Sagan, o seu jeito e talento para ensinar, transmitir e inspirar. Eu arrisco até a dizer que Contato não é um livro, e sim uma experiência. Literalmente, uma viagem para outro universo. Literalmente, um contato consigo mesmo, com o âmago do ser humano e do que significa ser humano. Ser humano como indivíduo, ser humano como sociedade, ser humano como um povo, ser humano como uma única espécie habitando esse planeta juntos, independente de religião, nacionalidade e raça.
Com certeza, Contato foi o melhor livro que li em 2021. É muito gratificante poder terminar o ano com a leitura dessa obra, fechando com chave de ouro. Foi o primeiro livro que li de Sagan e certamente foi um ótimo pontapé inicial. Carl é muito inteligente, criativo e inspirador, ganhou mais ainda minha admiração. Contato entrou para os meus favoritos.
Nota: 10/10