O Garrancho 02/03/2023
Uma estreia literária que causou um benfazejo alvoroço
Na literatura brasileira, poucos foram os autores que souberam aproveitar o nosso folclore como matéria-prima quando da escritura de suas obras ficcionais.
Simões Lopes Neto, com “Contos Gauchescos” (1912), Mário de Andrade, com “Macunaíma” (1928) e Guimarães Rosa, com “Sagarana” (1946), inquestionavelmente deram moldura artística de primeira grandeza à parte substantiva do folclore nacional. Esses representantes do nosso cânone, como membros de um distinto “Clube do Bolinha”, se não estivessem abertos a bem-vindas novidades, se sentiriam de certa forma ameaçados por Ruth Guimarães (1920-2014), pois “Água Funda”, seu romance de estreia, publicado quando a escritora tinha apenas 26 anos, causou um benfazejo alvoroço entre críticos e leitores – maravilhados por um texto que recupera com maestria elementos folclóricos e com linguagem caipira.
A narrativa se estabelece a partir da contação de um narrador anônimo que, num arco temporal de meio século, tenta com seus “causos” apresentar a seu interlocutor – frequentemente chamado de “moço” – ocorridos que marcaram a vida de Sinhá Carolina, proprietária da Fazenda Olhos d’Água, e de Joca e Curiango, casal de trabalhadores que, como vários outros personagens, caem em desgraça.
Lendo esse que já é considerado um clássico da literatura de autoria afro-brasileira, me lembrei das palavras de Joaquim Nabuco quando escreveu que “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Tal verdade – que nos envergonha e entristece – não aparenta infelizmente que vá caducar tão cedo neste país, haja vista o recente caso de trabalho análogo à escravidão ao qual cidadãos oriundos da Bahia eram submetidos em vinícolas do Rio Grande do Sul, mais precisamente na Serra Gaúcha.
Pois não é que eu li pela primeira vez esse valioso legado literário de Ruth Guimarães justamente nesse período em que tal crime repercute não só aqui mas no mundo? A autora, que com seu livro antecipa traços do realismo mágico latino-americano, denuncia – sem beirar o panfleto – as consequências dessa chaga histórica que jamais poderá ser esquecida.
“Eu não contava muito com a vida e me contento com pouca coisa. Mas aquilo lá não é vida, é morte. E até pior do que a morte. É um ermo que espanta. Mato fechado, tudo, tanto que é preciso abrir picada com facão e foice. Arranchamos num claro e ficamos trabalhando. Mosquito, febre, calor, isso nem conto. Em qualquer lugar há isso. O pessoal é que não prestava. O patrão tinha uma ganância! (...) Tinha partes com o diabo, eu acho. E, quando a gente parava um pouco, para limpar o suor, ou beber um gole d’água, lá vinha ele: ‘Tenho um contrato assinado por vocês. Quem não quiser trabalhar vai para a cadeia como vagabundo’. Aquilo doía na alma. (...) Não havia mistura. Estava dando maleita no pessoal. Mas pior do que a maleita era ter que comprar no armazém. (...) Pagam em vales. E os vales são aceitos só no armazém lá deles. Uma tramoia desgraçada. O que eles querem é trabalhador para trabalhar de graça.”
Não foi à toa que Antonio Candido assim se referiu à obra de Dona Ruth Guimarães: “Quem começa desta maneira irá, certamente, muito alto na carreira de escritor”. Vaticínio que se revelou o mais correto, contrariando uma das passagens mais famosas da produção de Ruth: “A gente passa nesta vida, como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada”.
Como a literatura pode mudar os leitores e os leitores podem mudar o mundo, leiamos mais Ruth Guimarães!
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