spoiler visualizarVanderlei 08/05/2019
Quantos ensinamentos importantes. Reflexões a respeito de tudo, contidos em um cenário tão personificado como algo vivo e influente no psicológico dos personagens. O Mayombe tem cheiro, umidade e escuro, sentimos isso nas linhas de Pepetela. Separei alguns desses momentos de sabedoria sobre a vida, que me atraíram ao longo do livro e que desejo registrar.
-“Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura do café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta”. P.14
Logo no início do livro somos apresentados à maneira imersiva que conheceremos os personagens. A frase que destaquei acima é de Teoria, o professor, aflito no dilema pessoal por ser mais claro e ter que provar-se, em meios aos outros militantes, envolvido na luta.
-“Sem Medo fumava o seu primeiro cigarro daquele dia. Restava-lhe um, que seria guardado para o dia seguinte. Estou a ficar velho, pensou ele, começo a tornar-me previdente. Antes eu teria fumado todos os cigarros no princípio e depois sofreria o tempo que fosse necessário. Só os velhos são capazes de repartir o prazer. E é por ficar velho, aos 35 anos, que xinguei o Muatiânvua pela sua ousadia. É por ficar velho que não aprovo a coragem generosa do Comissário? O risco é como o prazer, o jovem não o pode repartir”.p.55
Nesta segunda passagem, início a destacar o personagem pelo qual desenvolvi uma admiração profunda. Sem Medo oferece visões complexas e sábias acerca de diversos assuntos, e como personagem multifacetado que é, não deixa de apresentar uma humanidade um tanto quanto verossímil.
-“Tu, Lutamos, és um burro! – disse Sem Medo. – Quem não quer estudar é um burro e, por isso, o Comissário tem razão. Queres continuar a ser um tapado, enganado por todos... As pessoas devem estudar, pois é a única maneira de poderem pensar sobre tudo com a sua cabeça e não com a cabeça dos outros. O homem tem de saber muito, sempre mais e mais, para poder conquistar a sua liberdade, para saber julgar. Se não percebes as palavras que eu pronuncio, como podes saber se estou a falar bem ou não? Terás de perguntar a outro. Dependes sempre de outro, não és livre. Por isso toda a gente deve estudar, o objetivo principal duma verdadeira Revolução é fazer toda a gente estudar. Mas aqui o camarada Mundo Novo é um ingênuo, pois que acredita que há quem estuda só para o bem do povo. É essa cegueira, esse idealismo, que faz cometer os maiores erros. Nada é desinteressado”p.75
Sobre o saber, o Comandante intervém na discussão entre Lutamos, um dos poucos que jura lealdade absoluta ao comando e Mundo Novo, um intelectual, teórico e tribalista, que tentava incentivar o outro a frequentar as aulas.
-“Discutir para quê? – pensou Sem Medo. Desenterrar o que já morreu. Os homens gostam de se flagelar com o passado e nunca se sentem contentes sem o fazer. É a incapacidade de pôr uma pedra sobre um facto e avançar para o futuro. Há outros, no entanto, os que não sabem gozar a vida, que só veem o futuro. Incapacidade de sofrer ou gozar uma situação. Se sofrem, consolam-se, pensando que o amanhã será melhor. Se são felizes, temperam essa felicidade pela ideia de que ela acabará em breve. Eu vivo o presente; quando faço amor, não penso nas vezes em que não encontrei prazer, ou que será necessário lavar-me a seguir. Mas o Comissário é um miúdo, cuja personalidade está indecisa entre o passado e o futuro. Poderá talvez aprender a gozar a vida, mas por enquanto ainda necessita duma explicação.” P.107
Nesse instante, o Comissário revoltou-se com o Comandante, e após desautorizá-lo, procurou o líder para reaver a situação. E em sua ponderação, mais uma vez, Sem Medo demonstra uma condição superior para avaliar fenômenos presentes na vida humana como o presente, o futuro... e o “pastime paradise”.
-“Homens que trabalham há muito tempo juntos cada vez têm menos necessidade de falar, de comunicar, portanto de se defrontar. Cada um conhece o outro e os argumento do outro, criou-se um compromisso tácito entre eles. A contestação desaparecerá, pois. Onde vai aparecer contestação? Os contestatários serão confundidos com os contrarrevolucionários, a burocracia será dona e senhora, com ela o conformismo, o trabalho ordenado mas sem paixão, a incapacidade de tudo se pôr em causa e reformular de novo. O organismo vivo, verdadeiramente vivo, é aquele que é capaz de se negar para renascer de forma diferente... O problema é esse. É que, nos nossos países, tudo repousa num núcleo restrito, porque há falta de quadros, por vezes num só homem. Como contestar no interior dum grupo restrito? Porque é demagogia dizer que o proletariado tomará o poder. Quem toma o poder é um pequeno grupo de homens, na melhor das hipóteses, representando o proletariado ou querendo representá-lo.” P. 112
Em outro momento diálogo/ensaio, sem medo discursa sobre suas compreensões acerca do movimento de libertação de Angola e seu princípio de que brigas devem ser naturais e expostas a todos militantes, pois apenas com as divergências e autocriticas que o movimento poderá se realimentar das demandas e não se tornar um governo comum.
-“O Comissário olhou Sem Medo. Olhar puro, de criança, embaciado pelas lágrimas. É assim que te vais tornando homem, pensou Sem Medo. Tornar-se homem é criar uma casca à volta, cheia de picos que protejam, uma casca cada vez mais dura, impenetrável. Ela endurece com os golpes sofridos.”p. 140
Sublinhei este momento pois inaugura uma das partes mais contrastantes do clima do livro, mais de ensinamentos sensíveis e valiosos a respeito da intimidade de um homem. A traição de Ondina sobre o Comissário nos faz sofrer juntos e aprendermos a força de uma superação e o valor do amadurecimento.
-“Eu fazia trabalho clandestino, por vezes tinha de arrancar para Caxito ou Dalatando. O meu emprego ressentia-se com isso, mas não me importava. Ela importava-se, dizia que eu ia arranjar mulheres, que não queria ter uma boa posição social, que ela é que sofria a miséria etc. Eu considerava isso como ciúmes e estava tranquilo. Se tinha ciúmes é porque me amava. Ingênuo! O ciúme e o amor são independentes, pelo menos nesta sociedade.”p.’142
Num diálogo extenso, de páginas, Sem Medo se aprofunda em seu íntimo ao narrar sua história com Leli para o Comissário. A mulher que o largou para ficar com outro, e após ele se empenhar para desgastar a relação dela com o novo amante, a fez implorar para voltar com ele, mas todo o interesse de sua parte tinha se esvaído junto ao prazer de reconquistá-la. E assim ela o perseguiu apaixonada até o fim, mesmo sabendo ele não mais a gramava. Fica desse momento uma grande observação sobre não haver, necessariamente, relação entre amor e ciúme.
-“O contrário da vida é o imobilismo – disse Sem Medo. – No amor é a mesma coisa. Se uma pessoa se mostra toda ao outro, o interesse da descoberta desaparece. O que conta no amor é a descoberta do outro, dos seus pecadilhos, das suas taras, dos seus vícios, das suas grandezas, os seus pontos sensíveis, tudo o que constitui o outro. O amante que se quer fazer amar deve dosear essa descoberta. Nem só querer tudo saber num momento, nem tudo querer revelar. Tem de ser ao conta-gotas. E a alma humana é tão rica, tão complexa, que essa descoberta pode levar uma vida. Conheci um tipo, um militante, que ao se juntar a uma mulher fez uma autocritica sincera do que era. Passou uma noite a falar. Contou tudo tal qual se via... Ao fim de um mês, a mulher abandonou-o. E ele era o melhor tipo do mundo. O seu mal foi aplicar à letra no amor o que aprendera no Partido sobre os benefícios da autocritica”p.148/149
Quase como que montando um manual, ainda em um diálogo com o Comissário, Sem Medo mostra porque a “rotina é a pior inimigo do amor”. Ao fim, exemplificando com o que destaquei da p.112, conta o porquê da autocritica não servir ao amor.
-“Isso é que me enraivece. Queremos transformar o mundo e somos incapazes de transformar a nós próprios. Queremos ser livres, fazer a nossa vontade, e a todo momento arranjamos desculpas para reprimir os nossos desejos. E o pior é que nos convencemos com as nossas próprias desculpas, deixamos de ser lúcidos. Só covardia. É o medo de nos enfrentarmos, é um medo que nos ficou dos tempos em que temíamos Deus, ou o pai ou o professor, é sempre o mesmo agente repressivo. Somos uns alienados. O escravo era totalmente alienado. Nós somos piores, porque nos alienamos a nós próprios. Há correntes que já se quebraram mas continuamos a transportá-las connosco, por medo de as deitarmos fora e depois nos sentirmos nus.”p.191
Ondina agora, em um de seus momentos reveladores, ao estar instalada no Comando em Dolisie, se expõe muito a Sem Medo, e passamos a entender sua complexidade, e como Comissário era realmente muito simplório em vivência e em espírito, enquanto miúdo, para domar uma mulher sedenta de sabedorias que temos acesso ao longo do livro pelas falas de Sem Medo.
-“Tu és o gênero de homem que as mulheres gramam. Tu passas por elas, indiferente e altivo. As mulheres são masoquistas, gostam de quem as trata como mercadoria cara mas acessível para os recursos do comprador. Assim tu as consideras... “p.197
Foi assim que Ondina descreveu o magnetismo de Sem Medo com as mulheres, antes de ficar totalmente tomada por um tesão que a fez entregar-se loucamente para ele. Sem dúvidas um ensinamento...
-“- Tu amas o João. Tu reencontraras um dia o João. – Neste momento amo-te. É a ti que amo. – Não. Desejas-me, é diferente. Mas amas o João. É isso o amor. Manter a ternura pelo mesmo homem, embora se deseje outros a momentos diferentes.... – Amo-te, Sem Medo. Amo-te e, ao mesmo tempo, fazes-me medo, pois és demasiado senhor de ti. – Se fosse senhor de mim, não viria esta noite. É um sinal de fraqueza. No fundo, sou um fraco. – És um homem, é tudo.”p. 231
Encerro as citações que destaquei enquanto lia o livro há algumas semanas atrás com esse diálogo de Ondina, se dizendo apaixonada pelo Comandante, e que reforçam seus ensinamentos sobre o amor.
O livro é dividido em 5 capítulos: A missão, A base, Ondina, A Surucucu e A Amoreira. Cada um com sua situação central liderando a trama, sempre apresentando nas relações entre os personagens seus pontos fortes, em uma constância de relevância e substância que fazem o livro extremamente coeso e saboroso. Em especial pelo português com sotaque que se faz ouvir na leitura e das palavras típicas do vocabulário dos guerrilheiros que nos marcam, como as já citadas, miúdo, gramar; também, tuga (pejorativo para os colonos), maka (briga), pépécha (arma soviética que usavam), sacador (mochila) etc.
Além das citações que já destaquei, outro hábito que criei ao longo da leitura foi descrever os personagens (num pedaço de papel que, desprevenido, no dentista, minha mãe me emprestou como marca páginas) que tinham momentos de “Narrador”, de acordo com seus pensamentos. Como já o fiz com Teoria, Lutamos e Mundo Novo, lá em cima. Por exemplo, Milagre é o bazukeiro; Muatiânvua – marinheiro; André quando se pronunciou se mostrava despeitado pela punição por ter traído o Comissário, foi despossado; Chefe de depósito se mostrou muito fiel ao Comandante em suas declarações; Chefe das Operações - um dos poucos personagens que no começo mostrava imenso potencial e foi menos explorado pra dar lugar ao desenvolvimento dos outros 2 líderes -, para ele eu escrevi: um camponês; o Comissário Político João, responsável pelo epílogo, apresentando todo seu aprendizado, o descrevi como “novo sábio”, sua imagem física que criei para mim, destoava um pouco da descrição do livro. O via semelhante a um vigilante de onde trabalho, baixo, atarracado, meio gordinho e desinteressado, mas basta você esboçar um comprimento para desanuviar toda sua feição e ele iniciar suas verdadeiras características: atenção e disponibilidade.
Para o Comandante acho que resumi bem o que ele representa para esse livro em situações que ele viveu, que podem ser interpretadas de forma controversa, mas que servem para temperar um ótimo personagem. A ele vi fisicamente, uma espécie de incorporação do Idris Elba caracterizado em seu personagem de Beasts of no Nation.
Me estendi mais do que deveria, mas acho que o livro vale isso. Não é o 1º livro de autor africano exigido pela Fuvest à toa. Além de seus méritos literários, o livro enaltece o país de origem, situado na guerra na Angola, o livro conta desde o 4 de fevereiro de 1961 o que o país passou pela luta e reflete sobre o que seria o futuro desse país maltratado pela exploração colonial, assim como o Brasil. Esse assunto, assim como a vivência do próprio Pepetela enquanto militante, são coisas que ainda procurarei me aprofundar. Os aprendizados que coloquei aqui, pretendo somá-los aos meus conhecimentos, como grande fonte de sabedoria.