Amanda 17/02/2018Na ponta da facaPrimeiro livro da trilogia A Primeira Lei, O Poder da Espada é a ponta do iceberg, o primeiro passo na jornada sangrenta e brutal proposta por Joe Abercrombie. Nossos companheiros de viagem serão Jezal dan Luthar, capitão da guarda da cidade, Sand dan Glokta, inquisidor, e Logen Nove Dedos, além de outros personagens secundários.
O livro é dividido em capítulos sob pontos de vista, em sua maioria, destes três personagens principais, tendo, ocasionalmente, um capítulo dedicado a outros plots. O narrador é onisciente, em terceira pessoa, mas é interessantíssimo como o autor consegue narrar de formas diferentes para cada um deles, criando um estilo único.
Os personagens são a grande sacada de Abercrombie, seu maior feito neste primeiro livro. Como são bem construídos! Luthar é um poço de arrogância, fraco, aproveitador, cheio de si. O autor grita seu escárnio em cada linha que escreve sobre o capitão. E nem é preciso tanto esforço para ele ser o personagem mais detestável do livro.
Logen Nove Dedos é um guerreiro nórdico com uma fama sanguinária e mais inimigos do que consegue contar. Ele se separou de seu grupo em uma emboscada e presumiu a morte de todos, de modo que decidiu seguir seu caminho sozinho. Para aonde nem ele sabe, talvez para longe de tanta matança. Uma nova perspectiva, um novo futuro. Ou não.
Apesar de ter o costume de resolver seus conflitos na base do banho de sangue, Logen tem uma natureza extremamente solitária, introspectiva e melancólica. Logen me lembrou bastante o saxão Uhtred, das Crônicas Saxônicas de Cornwell, o que criou em mim uma empatia instantânea.
E Glokta... ah, Glokta... palmas para Abercrombie por ter criado talvez o personagem mais original que já tive o prazer de conhecer em um mundo de fantasia. O torturado que se torna torturador. O ex-herói de guerra quebrado até a última fibra. O sacana mais adorável da história inteira. Muito disso se deve à forma como o autor abordou e deu profundidade a Glokta, explicitando seus pensamentos sórdidos através de passagens em itálico. São, com certeza, as melhores citações que você verá.
Outros personagens também são muitíssimo bem construídos, porém não tão explorados. Pessoalmente destaco a Ferro, a sulista mais mal humorada e perigosa que poderia cruzar o seu caminho, uma mulher violenta, decidida, implacável. Ainda que sem tanto espaço, Ferro rouba a cena em qualquer menção que receba. Nada de mocinhas indefesas aqui!
Acho importante ressaltar que a força motriz de toda a trilogia, inclusive deste primeiro livro, é a violência. Ainda que seja um livro de fantasia, os maiores inimigos são os próprios homens, a ganância, o instinto assassino e destruidor, a necessidade de triunfar sobre o próximo, de esmagar a concorrência e de tomar para si tudo que pode. A vingança, o ódio, a guerra.
Abercrombie tem um estilo extremamente explícito de escrita, cruel, duro, frio. Nada é amenizado. A guerra é feia, senhores, e ele deixa isso bem claro. Descrições de duelos e lutas não bastam, ele vai além e fala de dentes quebrados, da fadiga, do desespero, da sujeira e do gosto de sangue. Aos perdedores, a morte. Aos vencedores, feridas, bandagens, frio e fome.
Não existem heróis, não temos uma linha definida entre bem e mal. Todos os personagens, principais e secundários, são cheios de erros e defeitos, são tão humanos! E o vilão nunca é o vilão sob o seu próprio ponto de vista, não é mesmo?
Porém, entre tantos pontos acertados, e são muitos, eu preciso falar do ritmo da narrativa. É lento, bem lento em certos momentos. Alguns capítulos do Luthar são um martírio e a única motivação é perceber que o próximo é o do Glokta. Hoje, terminando o terceiro livro, percebo que este primeiro parece uma enorme introdução, um Ato Um da história, e a falta de um objetivo claro nos dá a sensação de que estamos nadando num oceano de letras sem saber aonde vamos chegar. Bom, o importante é que chegamos, graças a deus.
O Poder da Espada é uma introdução grandiosa para uma trilogia de qualidade indiscutível que, apesar de alguns erros aqui e ali, mostra-se irônica, debochada, nua e crua. A história não é clichê, não é previsível e inclusive nos surpreende com algumas situações inusitadas. A trilogia como um todo é uma grande gargalhada maldosa bem na nossa cara. E a gente ri junto.