OgaiT 16/02/2022
A cidade, a memória e o tempo
Por meio de um longo diálogo entre o mercador Marco Polo e o Cã Kublai Khan, Italo Calvino, permite a construção de espaços fantásticos e muitas vezes futurísticos. Nesse romance, Calvino rompe com paradigmas de espaço, tempo e memória:
"Zora tem a propriedade de permanecer na memória ponto por ponto, na sucessão das ruas e das casas, apesar de não demonstrar particular beleza ou raridade. O seu segredo é o modo pelo qual o olhar percorre as figuras que se sucedem como uma partitura musical da qual não se pode modificar ou deslocar nenhuma nota. [...] Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou um retículo em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que deseja recordar: nomes de homens ilustres, virtudes, números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações, partes do discurso. Entre cada noção e cada ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de afinidades ou de contrastes que sirva de evocação à memória." (p. 19-20, A cidade e a memória 4).
Nesse sentido, é válido destacar que essas cidades são descritas pela visão do mercador Marco Polo, visão essa passível de uma intervenção falha da memória, bem com a repetição de uma mesma cidade durante a suas descrições. Outro diálogo interessante entre o Cã e Marco, é aquele em que o mercador estabelece a comparação entre cidades como forma de descrevê-la:
"— Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza
— Quando pergunto das outras cidades, quero que você me fale a respeito delas. E de Veneza quando pergunto a respeito de Veneza.
— Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza.
— Então você deveria começar a narração de suas viagens do ponto de partida, descrevendo Veneza inteira, ponto por ponto, sem omitir nenhuma das recordações que você tem dela.
[...]
— As margens da memória, uma vez fixadas com palavras, cancelam-se — disse Polo— Pode ser que eu tenha medo de repentinamente perder Veneza, se falar a respeito dela. Ou pode ser que, falando de outras cidades, já a tenha perdido pouco a pouco." (p. 82).
Considerando o título a obra, podemos entender que dentro de uma cidade, existem outras cidades que estão escondidas nos labirintos ou que estão à sombra dos pontos turísticos de determinada cidade. Sobre isso, o narrador afirma:
"As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas." (p. 44).