Gramatura Alta 18/10/2017
Escrito em 1968, ANDROIDES SONHAM COM OVELHAS ELÉTRICAS, o primeiro livro de uma série de Philip K. Dick com títulos esdrúxulos, é um clássico e um marco na literatura de ficção-científica. Muitas de suas obras, além de influenciarem vários escritores, já foram adaptadas para o cinema, como BLADE RUNNER (baseado neste livro e sobre o qual falo mais para a frente), MINORITY REPORT, TOTAL RECALL, SCREAMERS, NEXT, entre outras.
ANDROIDES SONHAM COM OVELHAS ELÉTRICAS se passa em 2019, em um futuro distópico, onde o planeta está exaurido devido a guerras e quase todos os animais foram extintos e substituídos por réplicas mecânicas. Possuir uma dessas réplicas é questão de status, e as pessoas usam esses animais para se exibirem. Quanto mais raro o animal replicado, mais dinheiro ele custa. Também foram criados androides idênticos a seres humanos, que são usados em explorações espaciais e têm apenas quatro anos de vida, uma vez que os cientistas não conseguiram resolver um problema de regeneração celular. A única forma de diferenciar um desses androides de um ser humano, é através de um teste de empatia.
Rick Deckard é um caçador de androides rebeldes que tem a missão de destruí-los. Em uma das missões, precisa “aposentar” seis modelos do tipo NEXUS-6, que são quase perfeitos. Para isso, ele procura auxílio da empresa responsável pela criação desses androides e acaba conhecendo Rachael Rosen, que é uma androide desse mesmo modelo. Ele se apaixona e começa a ter uma crise existencialista.
A síntese de ANDROIDES SONHAM COM OVELHAS ELÉTRICAS é sobre isso mesmo, existência. Afinal, como podemos determinar a existência ou não existência de algo ou alguém? Uma das androides perseguidas por Deckard é uma cantora, e através de sua performance, ela demonstra ter sentimentos que deveriam ser inerentes apenas a seres humanos. Rachael possui uma forma de pensar e agir que determina que ela se importa com Deckard, com sua segurança e sua felicidade. Ambas são produtos de uma fábrica, mas elas existem, elas agem guiadas por moral e algo que sintetiza sentimentos. Qual a diferença para um ser humano que age da mesma forma, cujos sentimentos são resultados de reações químicas e elétricas? Somos superiores só porque ao invés de sermos criados em um laboratório, nascemos do ventre de uma mulher? Como determinar quem tem direitos de continuar vivendo ou não?
Em uma determinada parte, após Deckard matar um dos androides, ele se pergunta se foi certo privar o mundo daquilo que o androide ainda poderia criar. Como perseguir seres que compreendem o conceito de vida e que tentam se proteger da destruição como qualquer outro ser vivo? Essas questões fazem com que Deckard comece a duvidar da sua própria existência, se ela não seria mais semelhante à dos androides do que ele inicialmente imaginava.
Então, feita essa breve análise do livro, chegamos à sua adaptação para os cinemas, BLADE RUNNER. Ridley Scott fez várias modificações, mas manteve a essência da história. Deu um nome à profissão de Deckard, Blade Runner, e um nome ao gênero dos androides, Replicantes. Criou uma atmosfera na cidade onde se passa a trama que foi copiada por quase todos os filmes de ficção-científica nos anos seguintes: um local escuro, superpopuloso, de ruas estreitas, chuvoso, caótico, ofuscado por gigantescos painéis de propaganda.
Deckard não é casado, não tem animais artificiais de estimação e tem uma presença mais confiante que sua versão literária. Essa faceta é aprimorada pelo porte carismático de Harrison Ford, perfeito para o papel. Sua relação com Rachael é mais intensa, e ela não tem a aparência assexuada do livro, mas, sim, a de uma mulher lindíssima e de uma presença forte.
Mas em termos de personagem, nenhum foi mais modificado do que Roy, o líder dos replicantes fugitivos. No livro, ele é apático, burro e em momento algum representa um desafio para Deckard. Já no filme, tornou-se um dos personagens mais memoráveis que o cinema apresentou. Interpretado por Rutger Hauer, desde a primeira cena em que aparece, ele consegue convencer a plateia do quanto é inteligente e perigoso. É ele o dono da cena e da frase que ficou na memória como uma representação perfeita do desperdício de conhecimento com a inevitabilidade da morte, e que eu marco logo abaixo:
“Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.”
Embora Deckard e Roy sejam antagonistas, o replicante tem como último gesto a comprovação de que ele valorizava a vida mais do que um ser humano. Todos nós desconhecemos o tempo que temos, por isso conseguimos sonhar com um futuro. Os replicantes só tinham quatro anos de vida e morriam. O desespero de Roy não era apenas em fugir, mas, também, encontrar uma forma de prolongar sua existência e a de seus companheiros. Tem sentimento mais humano do que a vontade de prolongar a vida e salvar quem você ama?
BLADE RUNNER foi um fracasso quando estreou. Isso aconteceu, principalmente, porque os produtores vendiam o filme como algo que não era. BLADE RUNNER não é um filme de ação, de perseguições ou de lutas, mas um filme de reflexão. Suas cenas extensas, sua música alta, que faz estremecer o corpo, quer provocar na plateia momentos de meditação sobre o que somos, quem somos e se temos consciência do que representa um ser vivo, que merece viver plenamente. Isso foi compreendido anos depois, quando o filme começou a ser vendido e alugado nas vídeo-locadoras. Finalmente aconteceu a compreensão do que ele representa, não apenas como obra cinematográfica, mas, principalmente, como uma história sobre representatividade, sobre diversidade, sobre tolerância, sobre compaixão e sobre o quanto desconhecemos do segredo de simplesmente existir.
Nós não terminamos de falar sobre BLADE RUNNER neste post. Semana que vem, sábado, voltamos com a crítica da continuação do filme, BLADE RUNNER 2049. Não percam!
site: http://www.gettub.com.br/2017/10/blade-runnerandroides-sonham-com.html